‘Ainda bem que não houve nada’

Sábado e domingo passado ouvi e li inúmeras vezes a frase título deste artigo, como consolo por ter sido assaltado na sexta feira, quando estacionava o meu carro para almoçar. Era uma e meia da tarde numa movimentada rua entre a orla e o Chame Chame, já estava a uns 50 metros do carro e caminhava tranquilamente em direção ao restaurante, quando fui abordado por um homem bem vestido, de arma em punho, que, imagino, de algum lugar ali perto observava os meus movimentos. Rapidamente ele pegou a chave do carro, celular e dinheiro, e caminhou com certa tranquilidade até o veículo para de lá sumir sem grandes dificuldades.

De fato, nada de mais sério aconteceu e não posso deixar de ficar feliz com isso, pois acompanho, sempre com muita apreensão e tristeza, os inúmeros casos onde a barbárie impera.

Ao longo de todo o final de semana, as imagens iam e vinham e um pensamento se fazia presente com muita frequência até ser sistematizado com precisão pelo amigo Andrezão Simões em uma postagem nas redes sociais: “Quanto a você e sua integridade física, claro que estou muito feliz, mas isto só não pode nos consolar. Esse ‘ainda bem que não houve nada’ está fazendo com que esta onda de violência pareça normal. Isto precisa mudar e já”.

Concordo plenamente e era justo o enfoque que pensava dar a este texto aqui para o CORREIO. Nessas horas, lembro muito do sociólogo argentino Atílio Boron que trata com propriedade da chamada “naturalização dos processos”. No seu excelente texto “A nova ordem imperial e como desmontá-la”,  sua análise é sobre o capitalismo e suas formas de penetração no imaginário social. Aqui, trago o conceito de naturalização para o campo da violência. Estamos nos acostumando tanto com ela, que quando algo de mais trágico não acontece, celebramos. Nossa indignação é superada pela constatação de que aquele homem que nos assaltou era, pelo menos, compreensivo e não nos perfurou à bala, mesmo tendo conseguido o que queria, levar o carro e alguns outros objetos de valor.

Nossa insegurança cresce de forma vertiginosa e não temos mais tranquilidade para nos deslocar, para sentar em um praça ou bar, ou para simplesmente flanar pela cidade. A discussão sobre se deveríamos ou não adotar o horário de Verão, praticamente foi tomada pelo fato de que, pela manhã, com o relógio adiantado, os trabalhadores sairiam de casa no escuro e, por conseguinte, correriam ainda mais riscos de assaltos.

As estatísticas do crime são alarmantes, assim como são escandalosos os números da concentração de riqueza no país e não podemos separar estes temas. Em entrevista ao site www.viomundo.com.br, o economista Marcio Pochmann aponta que no Brasil chega-se a ponto de os pobres estarem financiando com os impostos a saúde e a educação dos mais ricos.

Precisamos de um “salto no padrão civilizatório”, afirma ele, e este salto, complemento eu, não se dará se formos naturalizando todos os processos à medida que forem crescendo os desafios a serem enfrentados. Não me parece que podemos continuar pensando pequeno se queremos, de fato, começar a enfrentá-los.

 

Publicado em 30.10.2013 no jornal Correio* e no Terra Magazine.

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