EMPREGO

 

 

Os caras não escreveram mas a entrevista foi de Ana Mascia Lagoa

 [Nélson Pretto]

Smog era, no ano passado, um endereço virtual desestruturante. Nele, os pesquisadores e educadores puderam acompanhar dia a dia as aventuras de um educador brasileiro mergulhado nas pesquisas sobre o uso da Internet no ensino. O autor da página, professor Nelson Pretto (*), da Faculdade de Educação da UFBA, estava em Londres, fazendo o pós-doutorado e colocou na rede todas as suas reflexões, como teria feito o mestre escola francês do nos 20/30, Célestin Freinet, com o diário escolar. Indicado pela congregação para dirigir a faculdade a partir de janeiro, Pretto (autor de Escola sem/com Futuro, Papyrus) busca na forma com que as crianças lidam com as novas tecnologias as respostas para o dilema da educação frente à informática. No ano passado, organizou com crianças a aula inaugural da faculdade e, para sua gestão, elaborou um plano de 12 anos, que integra todos os grupos de pesquisa numa outra perspectiva de educação, centrada nas diferenças e na interação das diferenças. Graduado em Física, com mestrado em Educação e doutorado em Comunicação, Pretto cita seus amigos crianças para indicar o caminho do aprendizado: as pessoas aprendem futucando. Em entrevista ao Jornal do Brasil, ele falou sobre o papel das novas tecnologias e os limites da atual organização da escola: “Nossa função é formar profissionais capazes de mudarem o mercado”. (*) http:/www.ufba.br/÷pretto

– Qual é a grande questão da Educação hoje?

– Em geral achamos que a educação tem problemas e que pode ser consertada. Eu acho que é mais que isso. É preciso dar uma mexida geral na lógica da sustentação à concepção e educação. Por mais que as correntes pedagógicas estejam pensando em novas concepções, novos projetos, novas metodologias, a educação continua sendo preparar a meninada para a ordem e eu acho que devíamos preparar para a desordem. Não é uma questão de moda, mas a ciência não está mais trabalhando com processos reversíveis e sim irreversíveis, com as interações não lineares e não nas lineares. E a escola continua centrada na idéia de ordem, de reação linear. O que significa que uma mexidinha aqui, pequena, resulta em algo pequeno. Numa interação não linear, ninguém sabe o que acontece em seguida. Quando a escola se insere no mundo complexo, no sentido pleno da palavra,a se esforça para ser uma escola contemporânea e traz esse mundo para a escola, podemos fazer uma imagem do que acontece.

– Qual?

– Sabe aquela massa de criança brincar, que parece uma geléia? É como se puséssemos dentro de gavetas, de caixinhas e não coubesse, ficasse vazando. Quando mais se tenta forçar apara dentro da gaveta, mas escapa.

– É isso que está acontecendo com as novas tecnologias? Escapa, não cabe, escorrega…

– Sim, acontece com o vídeo, a TV, o filme, a Internet. O professor usa vídeo. Só que os meninos não aguentam mais ver Sociedade dos Poetas Mortos, Ilha das Flores, O Nome da Rosa. São filmes maravilhosos, mas eles não aguentam mais. Sabe por quê? Porque pegamos o mundo da mídia, da comunicação e das tecnologias e enquadramos na análise sintática tradicional da escola.

– O mesmo ensino com outro suporte…

– Exatamente. Continua com a idéia de ensino. Não temos a idéia de interação, ou o que eu chamo de esforço de transformar a escola – professores, estudantes, todo mundo – em produtores de cultura e conhecimento. Você, na verdade, trabalha para transformá-los em melhores consumidores do tênis e de conhecimento.

– Conhecimento gerado aonde?

– Nos grandes centros, nos centros privilegiados, reforçando, mesmo nos projetos mais avançados, a ordem de coisas organizadas nos paradigmas do século passado. Por isso estamos trabalhando na Bahia a pedagogia das diferenças, onde a escola além de se preocupar com a universalização (que recebe todos os diferentes e forma todos iguais), ela vai trabalhar a interação das diferenças, com entrada de diferenças e saída de novas diferenças.

– Fala-se muito que a escola resiste a mudar. Há uma intencionalidade nisso ou é só resultado do medo de mudanças?

– É a soma das duas coisas. As políticas nacionais e internacionais trabalham sintonizadas e coerentes. Isso independe da presença do Bird ou não, porque a terceira via está trabalhando com os mesmos valores em Educação. Na Inglaterra, por exemplo, sem interferência do Bird, os valores são educação como negócio, atento ao mercado e centrado na resposta pela qualidade.

– Que qualidade é essa?

– É aí que eu me detenho. Para falar em qualidade é preciso saber os objetivos. O que eu almejo. E isso não existe.

– Então não é para avaliar?

– Sim, é para avaliar. Mas se eu parto das necessidades imediatas do mercado, tomando isso como algo dado, posto, que não vai mudar, e cabe a nós preparar os estudantes para entrar no jogo, não estou educando. A sistemática do avaliar começa definindo para quê se quer educar. Temos que formar um cidadão que em vez de se adequar a essas políticas, defina, formule políticas.

– Isso leva a um outro caminho no uso da tecnologia…

– Não queremos a Internet nas escolas, mas as escolas na Internet. É uma diferença fundamental. Eu quero ir ao Louvre ou a uma biblioteca na rede, mas quero também estar presente com meus valores emocionais, culturais e sociais na rede. Estando preparado para gerar conhecimentos no plural, poderei visitar outros conhecimentos. Agregar produções à sua produção.

– Corre-se o risco do material que está na Internet também ser formatado nas tais caixinhas do século 19?

– Sim. Eu tenho visto muito isso na rede. As produções também estão nas caixinhas. Mesmo nos projetos de escolas em que se usa Internet e a meninada faz as páginas, acabam caindo em um padrão, numa lógica de controle. Nos núcleos de tecnologia educacional, onde atuam os erradamente chamado de multiplicadores, há um padrão. E quando você impõe um padrão, obriga o estudante a buscar coisas para se enquadrar no padrão. Se há uma grade, não se viabiliza o pensar. E a escola é cheia de grades: a grade que cerca o terreno, a grade de horários, a grade curricular.

– Mesmo quando falamos de temas transversais?

– Mesmo assim, porque é transversal às caixinhas, às grades e assim não se avança muito. O que a escola tem que fazer é se apropriar da rede, ter uma rádio nela, uma TV comunitária, reproduzir o que passa na TV, usar tudo isso que está aí, o tempo todo. Não é para ter uma sala de vídeo, mas o vídeo o tempo todo na sala. Não é para se preocupar com o conteúdo didático de uma programa. Mas como ele pode ser usado didaticamente.

– O senhor é um profissional diferente. Não seguiu exatamente a carreira de pedagogo…

– Hoje não se pode mais falar em carreira.Eu comecei fazendo alfabetização pelo método Paulo Freire, ainda garoto. Depois fiz graduação em Física, mestrado em Educação e doutorado em Comunicação e pós doutorado em Estudos Culturais. Não é uma carreira padrão. Está fora da grade.

– Sua pesquisa se concentrou algum tempo na TV. Como o senhor vê a TV na Educação?

– Antes de trabalhar com TV, eu estudei os livros didáticos. Estava insatisfeito com os livros que usava como professor. Cheguei a usar o teatro para que meus alunos entendessem o processo científico. Eu comecei a ver que o meio de comunicação era primitivo. Aí nasceu o livro A Ciência do Livro Didático, que incorpora política do livro didático, filosofia da ciência e o livro didático de ciência. Deslanchamos uma campanha em 84/85 para discutir o livro didático em encontros de professores. Sem a Internet criamos uma rede de comunicação. Mas sucumbimos à pressão da indústria editorial. A TV entrou depois disso, por conta da minha ida à Funtevê, no Rio, com o projeto de fortalecer as universidades como produtoras de vídeo. As universidades produzem conhecimento, têm que produzir símbolos para a sociedade, nas teses mas também usando todos os meios.

A garotada já está conectada

A escola hoje inclui ou exclui?

– Exclui. Ela funciona como um hospital que só aceita aqueles que estão um pouco doentes, para ter certeza da cura e assim manter seus índices de desempenho. O que é diferente demais fica de fora. A escola tem que trabalhar com as diferenças.

Seu trabalho no doutorado, que virou livro, recebeu o nome de Escola Sem/com Futuro. Por que esse nome?

– A idéia era dizer que as tecnologias viriam para a escola, porque já estão aí, ajudando a construir, de forma estruturante, os novos modos de pensar. Elas não são ferramentas, não são auxiliares e nem têm a função de animar escola nenhuma. Elas não são complementares, mas essenciais para a nova forma de pensar e de produzir conhecimentos. Se eu coloco as tecnologias na escola como instrumentos, essa escola fica sem futuro, apesar da cara de moderna. Na perspectiva estruturante muda tudo.

Essa diferença entre ferramenta e parte do processo merece ser aprofundada, pois não está muito claro para a nossa sociedade que a tecnologia muda o jeito de ver, de pensar e de fazer

– Eu aprendo muito com a meninada, com meus amigos de oito, nove, dez anos.

Eles pensam diferente da forma como eu penso. Num bairro popular, por mais pobre que seja, eu encontro a casa com videogame. E não é o caso de discutir se é bom ou ruim, mas entender que essa garotada está conectada, interagindo, algo diferente está acontecendo. No ano passado, abrimos as aulas na Faculdade de Educação com uma aula inaugural dada por dez crianças de 8 a 14 anos. Elas têm uma intimidade total com as tecnologias, fizeram tudo sem inibições, sabem lidar com os microfones. Na ocasião eu perguntei a uma menina de oito anos como eles conseguiam jogar um jogo novo que vinha em inglês. Ela me olhou muito espantada e respondeu: Oxente! Futuca! Ou seja, ela constrói a forma de aprender, constrói o conhecimento, experimentando, fazendo, reconstruindo, errando, acertando, testando hipóteses. Um menino desses vê TV (e vê MTV, que já é uma piração), joga, ouve no walkman, escreve no micro e ainda come pipoca e, se tiver uma bola por ali, faz um pontinho. Eles podem dar conta de multitarefas. Essa é uma nova perspectiva de se relacionar com a máquina.

E a outra?

É aquela em que as pessoas dizem que a máquina é auxiliar e quem manda é você. Isso é mentira. Se eu estou na rede eu não mando nada. Demora para descer, cai, control isso, control aquilo…

Na perspectiva instrumental se fala em como fazer, há receitas...

– Na estruturante não existe o como, não há receitas. É na interação que se dá o processo de aprendizado e construção do conhecimento. Daí o professor tem que ser outro. Não adianta estar formando o professor em pílulas de treinamento, porque é a possibilidade de estar interagindo em rede que fará dos encontros presenciais uma possibilidade de geração de conhecimento. Isso é diferente da concepção linear onde eu trabalho primeiro com um aprendizado para depois gerar um conhecimento. Nessa lógica, há um tempo de receber e um tempo de devolver.

No fundo, no fundo, a escola não está nem mesmo nessa lógica do receber e

devolver conhecimento…

Lamentavelmente. Mas isso eu nem quero mencionar, porque de verdade, de verdade, eu prefiro que essa escola de hoje não funcione. O que me preocuparia é se ela fosse bem sucedida assim como é. Estaríamos liqüidados. Porque pelo menos do jeito que é existem as brechas e os meninos acabam achando seus espaços. Eles não aprendem andar de skate, não surfam?

Pois é, como eles aprendem? Não há um manual, não há receita de onda...

– Cada onda é uma onda e ele fica ali para pegar a onda certa.

E como ele sabe qual é a onda certa?

– Ele sabe e sabe também que tem que dar o tempo da onda e o seu tempo. O tempo da interação entre a onda, o mar, as correntezas, a respiração que define qual a onda certa. É isso que a escola tem que aprender com a meninada, que continua encontrando as brechas.

Mesmo de uniforme eles acabam se diferenciando...

– Isso mesmo. Eles já me perguntaram porque precisam usar uniforme. Acontece que eles inventam em cima, modificam o jeans, tiram o cinto, cortam. Eles querem fugir do padrão. Mas claro que a farda tem sua função e se liberamos para cada um vir perdemos a idéia de universalização. Mas essa é uma questão muito polêmica. Como outras, que remetem à idéia de organização, de formato, como as carteiras enfileiradas, as filas para entrar na sala. É com esse novo universo de grades que estamos dialogando sobre tecnologias a serem usadas como ferramentas. Se a tecnologia, porém, passa a ser usada como estruturante de novas formas de pensar eu estarei removendo as grades. As grades da sala de aula, do currículo, do muro, da programação.

Mas o esquema de grades é mais cômodo...

– Claro. Se eu quero colocar a tecnologia aí, é só encaixar na grade e, no máximo, se quisermos ser mais modernos, dizemos que é transversal. Mas no dizer que é transversal, meu ponto de referência ainda é a grade. É transversal a quê? Mas quando a tecnologia entra como estruturante, ela entra para quebrar essas grades, com as interações não lineares, onde pequenas coisas podem gerar grandes mudanças. Para isso não há receitas. O importante é aumentar a conectividade.

Fala-se muito em trazer a lógica do sistema produtivo para a escola. O que o senhor acha disso?

– Não temos que fazer isso. Não dá para trazer essa lógica para dentro da escola. Não temos que otimizar nada. Escola é o espaço para pensar, refletir e produzir cultura, conhecimento e, ao fazer isso, incorporar o que está aí. E se envolver com a comunidade.

Mas aí caímos na organização da escola?

– Eu ponho 600, 700 alunos num prédio eu acabo com ma escola difícil de administrar. Eu provoco os meus amigos arquitetos a construir uma nova escola, que contemple as novas formas de pensar e fazer. As carteiras, os móveis escolares precisam mudar. Estamos começando uma pesquisa para isso na Bahia, para criar uma forma de escola que não impeça o pensar. Porque do jeito que ela é, com a campainha, os 50 minutos, o recreio, as fileiras, tudo isso, não ajuda a pensar.

Podemos pensar em colméias, como pensou Freinet?

– As colméias são interessantes, a idéia das abelhinhas indo colher o mel. Aliás, Freinet se fosse vivo adoraria a rede. Muito do que fazemos hoje ele fazia com as condições que tinha no interior da França na primeira metade do século.

Hoje, mesmo com todo o investimento, não temos tecnologia de ponta. Isso não prejudica os planos de uso da tecnologia no ensino?

– Nós não podemos pensar em tecnologias só de ponta. Mas também não podemos achar que as escolas públicas podem se contentar com as coisas de segunda. O discurso que mais tem que ser combatido e com todas as nossas forças é aquele que diz: criança pobre não precisa de computador, precisa de merenda. Ele faz parte da velha lógica linear, em que os problemas têm que ser resolvidos por uma ordem cronológica. Nós temos que colocar a escola pública na ponta da conexão, como única forma de por fim ao apartheid social. Por isso é importante que o Congresso Nacional vote a lei da universalização o acesso. E isso não é sinônimo de orelhão. Queremos é que a escola esteja conectada na Internet. É como na música dos Titãs: tudo ao mesmo tempo, aqui e agora.

A escola não precisa disso para preparar para o mercado de trabalho?

– Não podemos construir falsos argumentos para equipar a escola com mais tecnologia. Como podemos dizer que estamos preparando para o mercado de trabalho? Ninguém sabe o que será esse mercado de trabalho. Não me venham dizer que ensinar planilha, processador de texto ou seja lá o que mais é preparar para o mercado de trabalho. O centro da questão é preparar a meninada para interagir com essa tecnologia de uma outra perspectiva, como integrantes de um só processo. Na música, nas artes plásticas, quem usa computador não diz que a máquina ajuda a fazer arte. Ele faz outra arte. Uma educação que muda pode construir um modelo em que teremos uma educação que forma cidadãos que interagem e não pessoas que consomem.

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