Artigo publicado na Revista Presente! número 38, Setembro – 2002.

Nelson De Luca Pretto

A mundialização da economia, evidente em todos os recantos, tem levado, muitas vezes, a generalizações sobre o processo de globalização nem sempre coerentes com outros movimentos fora da área econômica. Percebe-se, conforme já afirmou Gianni Vattimo (1991), uma também multiplicação de valores e culturas locais, mesmo com a grande concentração de capital e de empresas no mundo da mídia.

O desenvolvimento científico e tecnológico que estamos experimentando tem exigido das nações programas específicos visando a sua inserção e sua interação nesse mundo de múltiplas e velozes conexões. Esses programas, denominados de Sociedade da Informação, já foram definidos em muitos países, e agora, encontra-se em andamento no Brasil.

Os sistemas educacionais têm sido profundamente questionados por não buscarem fundamentos que possibilitem a efetivação da formação necessária às novas competências para o cidadão planetário. O desafio da universalização do ensino e da formação continuada impõe um raciocínio que, a meu ver, não aborda a questão por uma via aceitável. Um dos aspectos que vem chamando a atenção ao longo da última década é a ênfase que se tem dado à educação a distância como sendo a grande possibilidade de superação desses desafios educacionais contemporâneos. Mais do que isso, o que percebemos é que as questões nessa área são interpretadas como simples conseqüência da evolução das tecnologias, mais precisamente da evolução da computação. Penso que não estamos percebendo que o desafio que está sendo posto vai muito além da simples incorporação dessas tecnologias como novas interfaces comunicacionais.

Essa concepção de uso das Tecnologias de Comunicação e Informação (TICs) tem sido experimentada em várias países do mundo e já começamos verificar um certo descaso sobre a sua verdadeira eficácia. Já está virando senso comum afirmar-se que a incorporação dos computadores na educação não pode ser mera repetição dos tradicionais cursos ou aulas, estando as mesmas, no entanto, ainda centradas na superada e tradicional concepção das tecnologias educacionais, associadas à práticas de instruções programadas tão conhecidas dos educadores algumas décadas atrás.

Numa outra dimensão, também já quase senso comum, é entender que o uso dessas tecnologias será um fracasso, sem dúvida, se insistirmos na sua introdução como ferramentas, apenas como mero auxiliares do processo educacional, de um processo “caduco”, que continua sendo imposto ao cotidiano das pessoas que vivem um outro movimento histórico. Em todas essas situações, a distinção entre a educação presencial ou a distância, faz pouco sentido pois estando essas tecnologias presentes, mudam as dimensões espaço-tempo e, com isso, essa distinção presencial – a distância esvazia-se de sentido.

O problema posto na mesa, agora, é a necessidade de considerar que esse movimento contemporâneo proporciona a oportunidade sem igual de aproximar novas (e velhas!) tecnologias ao processo educativo como uma possibilidade única de superar as falácias dos sistemas tradicionais de ensino – as conhecidas Pedagogias da Assimilação partindo para compreendermos a educação enquanto processo que se constrói-se a partir da diferença, instituindo o que estamos chamando de Pedagogias da Diferença.(Pretto, 2000). Mais do que isso, não é possível que os educadores fiquem esperando que as outras áreas (comunicação, informática e engenharias, para citar os exemplos mais conhecidos no Brasil) ocupem sozinhas esse espaço, que é eminentemente um espaço pedagógico. Esse não é um argumento corporativista pois não se está defendendo, que os educadores ocupem sozinhos esses espaços. A primeira e mais evidente razão para a não adoção dessa visão corporativa é a de que isso nem é mais possível. O exemplo da produção educativa para a televisão já foi bastante evidente e essa dicotomia entre aqueles que sabem televisão e os chamados conteudistas tem-se mostrado completamente superada, tanto do ponto de vista teórico como pratico. O momento exige que tenhamos uma maior integração entre aquelas áreas que antes eram chamadas apenas de áreas meios com aquelas chamadas de áreas de conteúdo. Instala-se assim, obrigatoriamente, um processo de negociação permanente entre as mais diversas áreas, com especial ênfase à Internet, e à toda uma formação da comunidade escolar (estudantes, professores, direção, comunidade vizinha) para o uso pleno das tecnologias.

Essa ênfase na negociação, segundo relaciona-se à Inteligência Coletiva e seu aspecto participativo, socializante, emancipador, necessários ao entendimento da complexidade que perpassa o simples reproduzir conteúdos pelo processo de mudanças na produção cooperativa e conectiva do saber-fazer às competências humanas.

O desafio que se coloca, nesse sentido, é o de viabilizar uma política que considere a escola – e nosso objetivo aqui é falar da escola mesmo, da educação dita formal, aquela que acontece e continuará acontecendo no espaço escolar! – como sendo um novo espaço, um espaço aberto às interações, só que agora, pegando emprestado da física, um espaço aberto de interações não lineares.

Para a viabilização de um projeto político como esse, torna-se necessário pensar nas escolas conectadas. A conexão passa a ser, consequentemente, a palavra de ordem primordial e significa simultaneamente acesso às tecnologias em si e à infra estrutura de comunicação.

Para isso já existe no país uma legislação específica, faltando, no entanto, a sua regulamentação e, com isso, viabilizar a sua implantação. A Lei Geral das Telecomunicações (LGT) ao ser promulgada, em 1997, instituiu o Fundo de Universalização dos Serviços das Telecomunicações (FUST), projeto de lei que busca dar suporte à implantação de redes públicas que estão à disposição de projetos educacionais. De 1997, quando a lei foi promulgada, até os dias de hoje, esse fundo não foi regulamentado e, consequentemente, não está sendo aplicado, gerando, de um lado, uma perda considerável de recursos e, de outro, um enorme atraso na possibilidade de desenvolver uma política educacional que tenha outras bases, não a da simples transmissão de informações.

A questão não é simples pois a viabilização desse fundo envolve somas consideráveis de recursos. Para se ter uma idéia, e de acordo com o senador Lúcio Alcântara, “pelas estimativas, se o fundo fosse aprovado neste ano [1999], teríamos, no ano de 2000, uma expectativa de receita da ordem de 760 milhões, para chegarmos ao ano de 2003 com uma receita prevista de 280 milhões. Isso ocorreria por uma razão muito simples: grande parte dessa receita decorre de privatizações e de parcelas que estão sendo amortizadas do processo de privatização.”

Com o não recolhimento, esses recursos ficam de posse dos próprios operadores do sistema telefônico e, com isso, ficamos praticamente três anos sem poder usar mais recursos para poder avançar nessa questão. Essa perda aparece como um fator relevante à não expansão das TICs na educação.

Paralelamente, desde 1999 vem sendo construído o Programa Sociedade da Informação [http://www.socinfo.org.br], lançado pelo Presidente da Republica em dezembro de 1999, que é de estratégica importância para essas transformações na área da educação. A metodologia de implantação do Programa prevê a elaboração, ao longo desse primeiro semestre de 2000, do chamado livro verde que está sendo produzido por cerca de 13 GTs, cada qual com, em média, 10 componentes, que representam diversas instâncias da sociedade civil, do governo, de organizações não governamentais, empresas, indústrias. Esse livro contém as bases iniciais para que se possa promover a discussão dos princípios ali expostos e, a partir de ampla discussão com a sociedade, pretende-se preparar o livro branco onde deverão estar definidos aspectos fundamentais da relação da nação brasileira com as tecnologias de comunicação e informação.

O Grupo de Trabalho de Educação tem pautado sua atuação no sentido de fortalecer a idéia de que este programa é muito mais que um programa da sociedade de informação, constituindo-se numa proposta de construção de um projeto de sociedade. Para esse GT, a linha de ação básica é a “formação para a cidadania”, devendo ser ela o eixo fundamental de todo o processo. O Programa deverá, então, explicitar de forma clara e contundente o objetivo de que a sociedade disponibilize para todos seus cidadãos o acesso às possibilidades de desenvolvimento integral como ser humano, em suas dimensões individual e social, objetiva e subjetiva. Ainda nesse sentido, insistimos que isso somente é possível se, no mínimo, duas questões básicas foram consideradas. De um lado, a conectividade física das escolas, conforme já nos referimos. De outro, a preparação dos cidadãos para esse mundo tecnológico. Precisamos, nessa linha, estar atentos tanto à formação dos professores que estão nas universidades ou em cursos de formação de professores, como àqueles que estão em serviço, já atuando no sistema. Essas duas questões são primordiais e fundamentais à busca de competências necessárias a formação e atuação dos cidadãos nessa sociedade “glocal”, que busca a expansão e a efetivação do espaço cibernético como espaço de saber resignificado.

Nessa simultaneidade de ações não se pode imaginar que seja possível continuar a trabalhar com projetos/programas que insistam na lógica da simples passagem de conteúdos para os alunos. Muito menos, podemos no contentar com a perspectiva de um mera preparação para o mundo do trabalho. Usando relatórios de OCDE de 1987, Boaventura de Sousa Santos descreve as expectativas de empresário ingleses sobre a formação universitária. A pesquisa da OCDE revela que o que se espera é que a “acima de tudo que a universidade os submeta [os jovens] a experiências pedagógicas que, independentemente do curso escolhido, criem flexibilidade, promovam o desenvolvimento pessoal e agucem a motivação individual”. (Santos, 1997, p. 198). Ou seja, que o sistema educacional proporcione a valorização e a busca de competências que o aluno desejar, pois o desejar depende muito desta flexibilização instituinte.

Temos, portanto, uma oportunidade sem igual pois podemos ter, simultaneamente, a escola atuando na sua dimensão local mais próxima e numa outra dimensão, planetária, fazendo com que a escola deixe de ser apenas uma repassadora de informações. A mudança dessa concepção exige uma escola centrada num amplo programa de conexão – montagem de redes tecnológicas –, onde a formação se dê de forma continuada, num misto de presença e distância. Essa concepção de formação possibilitaria a inúmeras pessoas estarem participando, trocando, discutindo e descobrindo novas formas de fazer e validar competências e experiências singularizadas.

O que temos visto, no entanto, é a falta de algo mais arrojado no sentido do estabelecimento de efetivas redes de comunicações. Já começamos a ver uma certa unanimidade quando se fala da incorporação das TICs na educação. Muito se fala de transformações profundas, do importante papel do professor, da necessidade de considerar os rítimos e velocidades dos alunos, nas transversalidades e interdiscplinaridades mas, na prática, continuamos, na operacionalização dessas propostas teóricas, reproduzindo as velhas práticas, métodos e sistemas. Percebe-se um descompasso entre o que se propõe do ponto de vista teórico e o que se configura como sendo a operacionalização das propostas, ou seja a proposta teórica desenvolvida por autores-educadores, não consegue adentrar os portões da escola e proporcionar, na prática, àquele menino ou menina a participarem da sociedade da informação.

O fortalecimento de um conjunto de ações mais continuadas com o uso de tecnologias contemporâneas de comunicação e informação no cotidiano da escola tem que se dar a partir da articulação intensa de ações com a perspectiva de associar a montagem da rede tanto no sentido físico como no sentido teórico, de forma a fortalecer uma nova concepção de currículo que não mais se constitua numa grade – em sentido estrito e em sentido figurado também – com um elenco de disciplinas e ementas soltas, que passam a se encaixar na grade, formando o todo, estando as disciplinas elencadas e arrumadas em seqüência hierárquica, uma sendo pré requisito para as demais, que se somariam linearmente.

A escola, numa nova perspectiva, passa a ter um papel muito mais forte, um papel significativo na formação das novas competências, que não sejam necessariamente competências vinculadas à perspectiva de mercado que domina hoje toda a sociedade. Que não seja, enfim, uma simples preparação para o mercado, mas que sejam capazes de produzir uma sinergia entre competências, informações e novos saberes.

Valores como solidariedade, trabalho coletivo, ética, passam a ser recuperados nesse contexto, a partir de um trabalho mais abrangente que tenha as novas tecnologias de comunicação e informação como elementos estruturantes desse novo pensar e viver. (Pretto, 1996)

Para encerrar, creio que seja importante recuperar um mensagem recebida de uma monitora do Movimento dos Sem Terra (MST), durante um curso do PRONERA, na Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia, em janeiro de 1999.

Permeando as aulas que ministrávamos de português, matemática, ciências, Internet e produção de vídeos, os monitores participaram de um debate sobre o FUST e a LGT. Durante os momentos em que os 60 monitores praticavam informática fomos recebendo os primeiros e-mails dessa população que sempre caracterizou-se pela palavra SEM. Estávamos trabalhando para diminuir as possibilidades de, num futuro bem próximo, eles também passarem a ser SEM-conexão e SEM-alfabetização digital necessária para o mundo contemporâneo. O que se destacou desse conjunto de primeiras mensagens recebidas foi a evidência do espirito de solidariedade que preside o Movimento dos Sem Terra e que estava também presidindo o nosso curso e consequentemente, quase todas as mensagens recebidas. A preocupação básica era com o companheiro que ficou no assentamento e não apenas com o crescimento pessoal de cada monitor. Creio que essa é a maior lição que eu podia ter recebido ao longo de toda minha vida profissional. Para encerrar, vejam o que me disse Suzy, quase como sendo a manifestação dos 60 ali presentes.

From: suzysuzart [suzysuzart@bol.com.br]

Sent: Terça-feira, 1 de Fevereiro de 2000 11:52

Subject: mensagem

Nelson e um momento muito gratificante para nos pois esse curso e maravilhoso onde estamos aprendendo informatica coisa que ainda nao conheciamos e agora vem o mais dificil que e passar para os nossos alunos poder dividir esse momento seria muito importante para eles fica suplica de quem sabe um dia levar a internet para os assentamentos desde ja agradecemos ao Pronera a formação para nossos alunos. E Seria um sonho ter internet nos assentamento quem sabe o pronera realizar esse sonho de conhecimento. beijos suzysuzart SUCESSO …. PRONERA. [destaque meu]

Um sonho, talvez! Mas possível de ser concretizado se pensarmos numa transformação profunda nesse sistema que possibilita leis como a do FUST fiquem sem regulamentação tanto tempo. Mudanças nessas políticas podem ser um passo na direção de, um dia, construirmos um país mais justo, menos desigual e mais feliz.

Bibliografia

Pretto, Nelson De. Luca Uma escola sem/com Futuro: educação e multimídia. Campinas/SP, Papirus, 1996.

Pretto, Nelson De Luca Construindo um escola sem rumo – documentos da gestão. Salvador, encarte, 2000.

Santos, Boaventura d. S.. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo, Cortez, 1997.

Vattimo, Gianni A sociedade transparente. Rio de Janeiro, Edições 70, 1991.