A Tarde, 28/04/2008, pag. 03
Nelson Pretto – professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia. nelson@pretto.info
Madrasta e padrasto, seguramente, são palavras que caíram de moda. Bem verdade que voltaram a ser usadas recentemente nas sensacionalistas coberturas da imprensa sobre a morte da menina Isabella, em São Paulo. A palavra madrasta vem do latim e nada mais é do que “mulher casada em relação aos filhos de um anterior matrimônio do marido”, tendo também um sentido figurado bastante forte. É a mulher má, “incapaz de sentimentos afetuosos e amigáveis”, conforme o Houaiss. Povoam o imaginário de todos nós as histórias infantis nas quais a malvada madrasta amedronta as criancinhas. Por extensão, mesmo o dicionário não definindo o padrasto como o homem mau, ele é assim compreendido ou, pelo menos, não lhe é reservado lugar de muito destaque nas novas famílias que vão se configurando nos tempos atuais.
No entanto, isso está mudando com certa rapidez, pois os casamentos pós-casamentos se sucedem, e filhos de um casal relacionam-se com pais e mães “emprestados” e, em muitos casos, com grande proximidade e muito carinho. Lembro-me de duas ou três situações que marcaram a minha vida de “pai” de outros “filhos”. Certa vez, num supermercado, estava com meu “filho emprestado” de quatro anos de idade. Com a liberdade e autonomia que ele sempre recebeu e aprendeu a ter, rodava aquele pequeno garoto de um lado para o outro enquanto eu escolhia alguns produtos. Com ele estava tudo combinado: na saída, daria o meu tradicional assobio para nos encontrarmos a caminho do caixa. Eis que um fiscal avista o menino sozinho e, de pronto, questiona: “cadê sua mãe?!” Silêncio… “e seu pai?!”, complementa rápido. Instala-se um certo pânico e, o que era um mero passeio de curiosidade e investigação pelos corredores do mercado, vira um espécie de terror. Já com o tom mais elevado, o fiscal saca sua última questão: “então, você está aqui com quem?!”. Pânico generalizado… Claro que ele sabia com quem estava, mas faltava-lhe a palavra. Resultado: desabou no choro, que foi o suficiente para que eu, atento à distância aos seus movimentos, pudesse soltar o nosso código-assobio, dando-lhe uma tranqüilidade que lhe permitiu correr para a segurança dos braços do… do “seu pai”.
De outra vez, uma amiga estava com a filha do seu marido à época quando encontrou um amigo que não via há muito tempo. “Oi, é sua filha?!”, ao que ela respondeu precisamente: “não, é a filha de meu marido”. Ao chegar em casa, a menina desabou no choro e depois explicou que ficara triste porque queria ser tratada como filha de fato ou, pelo menos, como algo mais próximo do que uma mera “filha do meu marido”, o que, seguramente não representava a intimidade que já existia entre aquela duplinha.
Por último, meu “filho” de nove anos, que conheci aos dois, não tendo como explicar o fato de ter um pai super presente e um “outro”, eu o atual marido da mãe, aos quatro anos assim se expressou sobre a situação: “mãe, já sei. Eu tenho dois pais, o meu pai verdadeiro, e um ‘pai falsinho'”.
Esses são pequenos exemplos que demonstram a carência de novas palavras para representar essas relações que estão se estabelecendo com as novas configurações familiares, e que, também aos professores, têm dado um certo trabalho nas escolas quando dos importantes exercícios propostos à meninada de identificação dos relacionamentos e redes familiares. Esses segundos pais e segundas mães, que, óbvio, não substituem os primeiros, mas que em muitos casos interagem fortemente com aqueles, precisam de uma denominação mais realista, que lhes dê mais conforto, tanto para eles próprios, como para as crianças. Quem sabe podemos chamar de paidois e mãedois? Muito feio! “Pai falsinho” também é estranho. Mãe emprestada, chega mais perto, mas ainda não diz tudo.
Sem dúvida, em breve, essa turma nova vai dar um jeito de nos ajudar a denominar melhor esses adultos quando, em novos casamentos, precisam assumir um importante papel de companheiros dessa gente miúda para quem quanto mais afeto houver melhor, seja do primeiro, segundo, terceiro ou enésimo “pai” ou “mãe”. Quem sabe assim tenhamos, num futuro próximo, adultos mais generosos e solidários do que os dos dias de hoje.
Artigo publicado em A Tarde de 28/04/2008, pag. 03 e replicado no Terra Magazine