Cabeças e cabaças

Nelson Pretto – Diretor da Faculdade de Educação da UFBA – www.pretto.info

Um som dissonante sai de uma cabaça amarrada em um arame. Um treco estranho, cheio de fios e lonas, pendurado no alto, parece uma asa a imitar o belo vôo dos pássaros. Uma bicicleta faz acender uma lâmpada. A meninada em volta de cada uma dessas e de tantas outras peças espalhadas por três exposições em Salvador, olha cada artefato e faz música, estripulias e invencionices. “Ah! eu faria isso muito melhor, pois aqui a asa ficou muito pequena e o vento escapole pelos lados”, diz um. “Humm… se ligasse lá na ponta um motorzinho e uma cabaça de cabeça pra baixo, dava pra tirar um som de cada pedalada”. Essas exposições, que unem ciência, tecnologia e arte, juntam coisas belas e sinalizam à juventude que a formação científica e artística vai além da sala de aula. E, para que isso se concretize, precisamos de políticas públicas que articulem esses campos em ações corajosas e que envolvam os meninos, os professores e os cientistas. Essas exposições, uma sobre Smetak, outra sobre Da Vinci e uma outra, ainda, na sede da Coleba, sobre energia, mexem com o meu passado, e duas coisas me vêm à memória. Uma mais distante, quando ainda no colegial (era assim que se chamava o ensino médio, que mudou de nome mas não mudou de tom!), reparava num homem cabeludo, com um jeito estranhérrimo, numa velha motoca BMW preta saindo da Federação para o Canela, onde, na Escola de Música, ía fazer as invencionices que hoje estão expostas no MAM, numa exposição absolutamente fenomenal. Da escola de Música – lamentavelmente, hoje em situação que nos causa grande tristeza! – ele saía para o Palácio da Reitoria, para os concertos de segunda à noite, e nós também saímos das aulas para a Reitoria, para um encontro com a Universidade, com a diversidade. Depois, um pouco mais velho, lembro-me das estripulias que fazíamos, já como professores, levando os alunos ao Museu de Ciência e Tecnologia, ali em Pituaçu, que a ignorância dos governos deixou ser destruído porque era obra “do governo passado”. Hoje, sem público e sem invenções, não pode mais contribuir para a formação científica dos jovens. Mas os exemplos não ficam só aí. O Observatório Astronômico de Anatares, em Feira, vive a capengar. Ali vemos um esforço incrível de batalhadores que mantêm aquele patrimônio da Bahia a duras penas. Apoiar essas iniciativas que já existem ou existiram é importante, mas poderíamos ter, espalhados por toda a Bahia, museus de Ciência e Arte, a céu aberto, em galpões, ou mesmo em casas sem uso, de modo que fossem criados espaços que articulassem educação, cultura, ciência, tecnologia e inovação, instalando um rico ambiente de formação – e de turismo! – fortemente favorável à construção de uma Bahia forte, com altos índices de alfabetização, das letras, dos números, das ciências e das artes.
Se uma empresa de energia pode financiar uma exposição em sua sede, pode também levar parte dela para o semi-árido ou à costa do Dendê. Ora, se uma empresa de telecomunicações pode financiar um museu das telecomunicações no Rio, pode levar algo similar para o nosso interior, articulando uma ação de formação com as instituições públicas de pesquisa e ensino superior espalhadas no nosso Estado.
Passear por essas exposições e ouvir os curiosos comentários dos meninos é de uma alegria indescritível. Como eles inventam, como buscam mais informações e tentam articular com o que lhes foi ensinado na escola! É tudo muito fascinante. Fico pensando nas possibilidade criativas de nossa juventude, que cria um carrinho para vender cafezinho com uma estética invejável, com articulações que funcionam perfeitamente, com alavancas, rolimãs e encaixes. Fico pensando na invenção fabulosa de um pedaço de pau com um parafuso na ponta sendo uma abridor de garrafa nas barracas de praia, no som tirado do tonel, da lata ou do pneu. Lembro-me também de Bira Reis inventando coisas, resgatando Smetak ali no Pelourinho. Fico imaginando as Secretarias de Estado apoiando as universidades para um forte programa de apoio às invencões dessa meninada, articulando juntas arte, cultura, ciência, tecnologia e muito mais. Por que não pensar na criação de um banco de invencionices, as quais depois poderiam ser viabilizadas pelos pesquisadores de nossas universidades, com o devido apoio de financiamento e, por fim, poderiam se tornar tecnologia aplicada para cá e acolá?
Na revista online da exposição (www.waltersmetak.com), Semtak é apresentado como aquele que “em busca de novas faculdades de percepção, cruzou fronteiras físicas, estéticas, místicas e musicais.” Cruzar fronteiras! Primeiro passo para começarmos a pensar em cidadania, juntando cabeças e cabaças.

Enviado para publicação no jornal A Tarde, Salvador/Bahia.