Soberania, também digital.

Soberania, também digital

por Nelson Pretto, professor da Faculdade de Educação da UFBA – nelson@pretto.pro.br

Estamos sendo literalmente invadidos por grandes empresas de estrondosos capitais — americanas e uma ou outra chinesa (por enquanto!) — que dominam o mercado digital de dados mundial. Nossas instituições públicas de ensino e pesquisa aderem a soluções proprietárias sem a menor cerimônia, conforme nos mostram os dados do Observatório da Educação Vigiada (https://educacaovigiada.org.br).

O Brasil, desde os anos 2.000, tem uma rica experiência no campo das soluções livres para todas as áreas do conhecimento, tendo se destacado como referência mundial na realização dos Fóruns Internacionais do Software Livre (FISL), em Porto Alegre, com a implantação, em 2005, do Portal do Software Público (SPB), à época no antigo Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, além de experiências populares e acadêmicas isoladas.

A Universidade Federal do Paraná (UFPR), liderada pelo reitor-hacker Marcos Sunye, referência do Centro de Computação Científica e Software Livre (C3SL) – criado em 2002, no seu Departamento de Informática -, propõe a implantação de um Ecossistema Digital Público, com a criação do Centro Nacional de Bens Públicos Digitais (CNBPD). Sou um entusiasta de que tenhamos uma instituição que coordene uma Plataforma Nacional de Bens Públicos Digitais e que possamos liderar a Aliança Nacional pelos Bens Públicos Digitais e pelo Software Público Brasileiro.

A iniciativa busca retomar e atualizar o movimento brasileiro de software livre e público, conectando-o à agenda internacional da ONU, a UNICEF, a UNESCO, o PNUD e a Digital Public Goods Alliance [https://www.digitalpublicgoods.net/], que, conjuntamente, retomam essa pauta com a emergência do conceito de Bens Públicos Digitais (Digital Public Goods – DPGs) com foco em soberania tecnológica, inovação aberta e inclusão digital. Trata-se de uma abordagem que valoriza tecnologias de código aberto, com licenciamento livre, interoperabilidade, Inteligência Artificial, inclusão e segurança, como instrumentos estruturantes para a soberania digital, a inclusão social e o desenvolvimento sustentável.

O tarifaço imposto pelo presidente americano ao Brasil, tendo como uma de suas justificativas a tentativa do Estado brasileiro de frear a vertiginosa expansão e invasão das chamadas big techs americanas, levantou a bola para nosso movimento em torno da Soberania Digital [soberania.digital].

Infelizmente, nossas instituições públicas de educação, ciência e cultura estão longe de vislumbrar uma iniciativa como essa, por suas opções equivocadas em direção às soluções proprietárias, que invadem nossa privacidade e roubam nossos conhecimentos e culturas. Nesse campo, a SBPC, com sua liderança política e acadêmica, tem um papel que pode ser estratégico, aliando-se a essa iniciativa da UFPR, justamente por já se constituir como uma importante referência nacional em software livre (Paraná Digital, Linux Educacional, C3SL), podendo, assim, aglutinar esforços na montagem desse ecossistema, articulando governo, sociedade civil e comunidade científica.

Entre os principais objetivos da proposta do CNBPD estão: instituir um repositório nacional de softwares e soluções digitais livres e abertas, hospedado e mantido pela UFPR; criar uma Aliança Nacional com a necessária e fundamental governança plural (universidades, comunidades, movimentos sociais, setor público e privado); integrar-se às políticas federais já existentes, como a Estratégia Nacional de Governo Digital (ENGD, Lei do Governo Digital , nº 14.129, de 29 de março de 2021, a Estratégia Federal de Governo Digital (EFGD), a Estratégia Brasileira para a Transformação Digital (E-Digital) e o Plano Brasileiro de Inteligência Artificial (PBIA); e promover a tão necessária autonomia tecnológica e o acesso universal a tecnologias públicas, seguras e interoperáveis.

A proposta é que esse Centro seja um órgão suplementar da UFPR, capaz de firmar convênios, receber recursos e representar a universidade na agenda nacional de bens públicos digitais, mantendo uma governança multissetorial e participativa, nos mesmos moldes do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), referência mundial na área.

Teremos, assim, aberto o caminho — longo e tortuoso, com certeza, mas alvissareiro — em direção à soberania tecnológica, à transparência e ao licenciamento livre de produtos e soluções, à superação da desigualdade digital e à implantação de modelos sustentáveis de economia digital, fortalecendo uma educação tecnológica crítica.

A proposta visa refundar o modelo de software público brasileiro, transformando-o em um ecossistema digital público, aberto e soberano, em sintonia com os princípios globais de bens comuns digitais e o fortalecimento da Soberania Digital brasileira, sem, no entanto, se fechar para o mundo.

NelsonPretto

Professor (e ativista) da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

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