Movimento da Fábrica: em busca de um Rio Vermelho pulsante.
Nelson Pretto (professor da Faculdade de Educação da UFBA) com a ajuda de muita gente, referida no texto.
Leio regularmente as matérias de Clarisse Pacheco aos sábados aqui no Correio. Passeio visualmente pela nossa cidade, por seus espaços, suas memórias e gentes.
O gosto pela memória me faz guardar muitas tralhas, é bem verdade. Vira e mexe, deparo-me com coisas que interrompem, momentaneamente, o que estou fazendo e, nesse momento, volto meu olhar para admirar algum antigo escrito, meu ou de alguém outro/a, um rabisco , uma antiga foto e, assim, deixo a imaginação passear por um tempo que já se foi.
Numa dessas leituras do Correio, havia foto do largo de Santana, conhecido como largo de Dinha, em homenagem à nossa famosa baiana de acarajé que lá baixou seu tabuleiro e de lá não sai, (o tabuleiro, claro!), agora, tocado agora por filhas e netas.
Na foto daquela matéria, ainda havia um largo sem largura, com a igreja tendo “sobrado” espremida entre a pista e um casarão, de um lado, e, do outro, algumas casas e um edifício, onde, no térreo, havia o nosso querido 68, bar que, pela obviedade do nome, abrigava nossas noites etílicas de debates políticos, culturais e otras cositas mas.
Aquele largo sofreu uma grande modificação na década de 1990, fruto de uma luta política dos moradores do Rio Vermelho que impediram a construção de um centro comercial que deixaria a igreja e o largo, menos largos ainda. Essa luta vitoriosa havia sido fortalecida, no meu modesto olhar, por uma outra, muito barulhenta, mas com retumbante derrota. Refiro-me ao Movimento da Fábrica, ocorrido um pouco antes, nos anos 1984/1985.
Ah! Como é bom relembrar esse tempo e essas histórias.
Comecemos com Pierre Verger:
“O passeio mais bonito que se podia fazer consistia em tomar, na Praça da Sé ou no abrigo da praça Castro Alves, o bonde de número 14 do Rio Vermelho de Cima, que descia pela Avenida Sete, passava pelo Campo Grande, no Garcia no Primeiro Arco, seguia depois pela rua Garibaldi passando pelo Segundo Arco. A partir daí o caminho se tornava tão estreito e arborizado que os dois lados do veículo eram fustigados na passagem pelos galhos das árvores. Uma vez ultrapassado o Jardim Botânico, não demorava chegar à igreja de Santana, no Rio Vermelho, e na praia da Mariquita.
Alguns vagões continuavam até Amaralina, contornando a Fábrica de Papelão e o Quartel de Amaralina. Daí em diante não havia mais estradas na direção de Itapuã, mas somente a praia de areia branca, coberta em algumas partes de um tapete de salsa de praia, planta rasteira de uso corrente na medicina popular e na liturgia do Candomblé.”
Nesse texto, encontramos pela primeira vez, para nós pelo menos, uma referência escrita sobre a existência dessa Fábrica de Papelão, localizada no bairro do Rio Vermelho. Ele integra as belas páginas de “Retratos da Bahia”, escrito por Verger, que descreve e mostra-nos um pedaço dessa nossa terra nas décadas de 1940/1950, numa preciosa publicação de 2002 da editora baiana Corrupio.
Essa edificação, incrustada no bairro mais boêmio da cidade, tem uma pequena história e quero, portanto, fazer um breve retorno àqueles tempos do Movimento da Fábrica. Mas antes, permita-me adiantar-lhes o final. Não é um mero spoiller, é apenas para que, sabendo do final, o leitor possa (re)viver esse recente passado com uma certa dose de inspiração para redobrar as lutas nesse difícil presente.
Queríamos, lá pelos anos 1980, que aquela velha fábrica fosse transformada em um centro cultural. Nascia assim o Movimento da Fábrica, nome carinhoso que nos foi dado pela cidade para o que denominamos de “Uma proposta de intervenção no Rio Vermelho: assuma a fábrica”.
O fim da história? Após quase dois anos de luta, a velha fábrica foi derrubada. Em seu lugar, vimos nascer um posto de gasolina e uma lanchonete americana (gostaram do lanchonete americana?!).
Mas vamos à história desde o começo. Antes, preciso dizer que esse texto dialoga com o manifesto que elaboramos em 1984. Todas as aspas, portanto, são daquele nosso documento escrito a muitas mãos e amizades fraternas.
O início
Tudo começa ali pelos anos 1983/1984, quando moradores e admiradores do bairro do Rio Vermelho, preocupados com o destinado dessa fábrica abandonada, deram início à construção do que ficou conhecido como Movimento da Fábrica.
O que queríamos – e ainda queremos – é mais um espaço cultural para a cidade. É verdade que estamos ganhando, pelo menos virtualmente, a Casa Rosa, recém-inaugurada com atividades online, mas já perdemos o teatro Maria Bethânia, o Cine Rio Vermelho, a Literarte, entre tantos outros espaços para o lazer e cultura.
O Movimento da Fábrica foi uma mobilização que mexeu com a cidade. Uma ação ativista – nem usávamos essa palavra à época – de moradores em defesa de um centro cultural no bairro, uma ação na qual estive envolvido de corpo, alma e tesão, junto com os queridos/as Nildão, Renatinho da Silveira, Carlinha, Getúlio, Eunice, Carla Leite, Nanna, Noca, Itamar Kalil, Carlos Sarno, Roland Paiva, Fritz, Juca Ferreira, e muito, muito mais gente.
Foram quase dois anos de muita mobilização, e, mais do que tudo, muita festa e alegria.
Produzimos, então, “Uma proposta de intervenção no Rio Vermelho: assuma a fábrica”, um verdadeiro manifesto poético-político:
“O momento atual é de reflexão para todos os cidadãos que tenham o mínimo de consciência e de compromisso com a nossa cultura. A Fábrica de Papel do Rio Vermelho é mais um monumento histórico na alça de mira do desenvolvimento inexorável. Propomos uma ação que contagie, que some todos os segmentos sociais – da sociedade civil ao Estado – para que juntos encontremos soluções viáveis para preservação da Fábrica de Papel e sua transformação em um espaço cultural à serviço da comunidade.”
Além de textos, abaixo-assinados e manifestações públicas, queríamos que algo maior estivesse presente naquela articulação. Não havia internet, nem celular. Mas a ideia presente no espírito dos que ali já estavam e dos demais que iam chegando – e chegou muita gente! – era de que a luta por um centro cultural no bairro teria que, ela mesma, se constituir numa ação cultural. Uma rede. Queríamos mostrar o Centro Cultural já em ação. E assim fizemos.
Foi uma luta política e cultural, na veia.
Fazíamos danceata em vez de passeata.
Animados, como não poderíamos deixar de ser, escrevíamos no documento base:
“Estamos resolvidos a sair desta pasmaceira, desta indesculpável indiferença com o que se passa em Salvador, e acreditamos que este é um sentimento comum e que tende a se manifestar cada dia com mais força e amplitude.”
Essa força e amplitude, no entanto, exigiam que conhecêssemos um pouco mais de tudo o que se passava por aquele pedaço de terra, cercado de um muro escuro, encravado no Rio Vermelho.
Sim, conhecer, pois o Rio Vermelho tem sua própria história. Ele
“antecede à cidade do Salvador. Desde o início do século XVI, há indícios de existência de aldeamentos indígenas e da presença de franceses traficantes de pau-brasil no local onde, em 1509 ou 1510, naufragou Diogo Álvares, o Caramuru.
Durante o século XVI, o Rio Vermelho teve um desenvolvimento muito lento com seus currais e armações de pesca, e a missão dos jesuítas. No século XVII, o povoamento da área cresceu quando a história da Bahia teve um capítulo flamengo: em 1624, os holandeses invadiram a cidade do Salvador, afugentando seus moradores que buscaram abrigo no distante arrabalde do Rio Vermelho. Foi aí, no Morro do Conselho, que D. Marcos Teixeira investido no cargo de capitão-mor organizou a resistência aos invasores.
Com o passar dos anos e uma população mais fixa, definiu-se a área com os núcleos da Paciência e da Mariquita. Mais tarde, surge entre os dois, um terceiro, hoje conhecido como largo de Santana onde se encontra a igrejinha da velha matriz.
O Rio Vermelho tomou impulso no ano de 1870, quando começaram a funcionar duas linhas de bonde ligando-o ao centro da cidade. Seu clima e suas águas atraíam pessoas de diversos locais para tomar “banho de sal” em suas águas medicinais, que curavam até beri-béri. Muitos vieram veranear e fixaram residência. O ‘Jornal de Notícias’ no final do século passado informava que ‘famílias se despedem dos seus amigos para veranear no Rio Vermelho’.
Refletia-se no Avenida Saudável, nome do teatrinho local, a principal característica de um bairro à beira-mar, rodeado de fazendas, hortas e currais.
Depois da abertura da Avenida Oceânica, no governo de J. J. Seabra, e do calçamento de muitas de suas ruas e largos, em 1923, o Rio Vermelho, segundo um antigo morador, “dormiu por muitos anos”. O loteamento do parque Cruz Aguiar, em 1942, pode ser tomado como marco das grandes e novas mudanças urbanísticas do bairro. Com as transformações que se seguiram perdeu-se muito do seu espírito provinciano e comunitário. Os edifícios de apartamento isolaram verticalmente os moradores. Apesar de mutilado em sua história, é exatamente por este passado rico de vivências que o Rio Vermelho continua sendo um dos bairros mais agradáveis de Salvador.”
Esse era o Rio Vermelho, que a bem da verdade ainda hoje é muito mais que um bairro, é um estado de espírito. Sua demarcação geográfica nem era – e nem é – muito definida. Algumas áreas de confluências de outros bairros, como dissemos no documento, terminam sendo consideradas como parte do bairro. Alto da Sereia, Vila Matos, término da Avenida Oceânica, parte da avenida Vasco da Gama (antigo caminho da linha de Bonde chamada de Rio Vermelho de baixo), Lucaia, início da Waldemar Falcão, Chapada do Rio Vermelho, Fonte do Boi e até mesmo o início das instalações do Quartel de Amaralina são todas regiões que bem podem ser chamadas de integrantes do Rio Vermelho.
Escrevemos mais sobre a sua história, a partir de algumas descobertas:
“A primeira e obrigatória descoberta sobre o bairro do Rio Vermelho é simplesmente desconcertante. É que são vários bairros acoplados, unidos e humanizados pelo mar. Mariquita, Santana e Paciência são escandalosamente independentes e furiosamente apaixonadas. Uma terra como essa não poderia parir filhos comuns. Essa é a segunda descoberta. Índios, pescadores, artistas, políticos, operários, toda a composição social de uma cidade aqui se estabeleceu. Filhos paridos, filhos adotivos e até mesmo afilhados. Mais que uma mãe, uma saudável e afetuosa senhora. O Rio Vermelho não tem fronteiras reconhecidas por seus filhos. Esta é a terceira descoberta. Adolescente e fogoso foi crescendo sem peias, rompendo barreiras, terra e mar unidos, corpo e alma tomados pelo ímpeto de procriar. Amaralina era arrebalde, mas era filha. Areia Preta (Ondina), parente próxima que acabou adotada. Uma grande curiosa família. Filhos apaixonados e marcadamente bairristas.”
Pois foi com essas ‘descobertas’ e história desse encantador lugar, entre pescadores, praias, casas, edifícios que, eis que surgiu, lá no longínquo passado, “uma velha e renitente fábrica, que silenciada no seu apito diuturno, persiste envelhecida e cercada, a compor a paisagem desse singular pedaço de Salvador, que mesmo sendo um bairro no papel, na vida e no conceber de seus moradores ousou ser três. Construída na década de vinte para produzir cerveja, a fábrica situava-se na antiga rua do bonde e hoje situa-se na mesma rua, agora chamada Marques de Monte Santo.”
Continuamos a futucar documentos e pessoas, pois precisávamos, como já disse, fazer do movimento uma ação cultural, de luta ativista, de festa e de resgate histórico. Para isso, nada melhor do que conversar, prosear com quem entende do riscado, os seus velhos moradores. E aí me permitam, mais uma vez, deixar o texto do nosso documento correr mais solto:
“Um velho operário, que aos 79 anos de idade ainda caminha diariamente para a velha fábrica, é que nos conta: “de início era apenas um pequeno barracão, funcionando com um motor a explosão, sendo aproveitada a água do rio das Pedrinhas, para fabricar a cerveja”. Assim foi crescendo a fabriqueta, ocupando espaço, adentrando entranhas do Rio Vermelho, formando hábito e atraindo interesses. Cresceu. Seu antigo proprietário, Trajano dos Santos Correa, que até técnicos ingleses foi buscar em Manchester, acabou por vendê-la à Cia Antárctica Paulista. Era fim da década de 1920.
O bonde continuava a passar, Amaralina continuava arrabalde, o morro do Conselho recebia todas as manhãs o sol e o mar. Pescadores operários e veranistas acordavam cedo obedecendo à vontade da fábrica que, apitando para chamar para o trabalho seus funcionários, interrompia o descanso de alguns.
Voltam os moradores a nos contar: “houve então uma explosão nos tanques reservatórios que danificou instalações, assustou moradores e incriminou os técnicos ingleses, acusados de participação criminosa no episódio. A explosão nos tanques acabou por determinar o fechamento da cervejaria”. Passou então a fábrica a produzir sabão, estopa e gelo. Já no final da década de 30 passaria a fabricar papel, o que fez até recentemente.
Saíam assim da paisagem do Rio Vermelho os caminhões e carroças, que carregados de cerveja e gelo, obedecendo o apito mercador da cervejaria, distribuíam para os moradores a Polar Pilsen. (Ou será a Polártica? pouco importa). Como diz um antigo morador: “testemunhas da época confessariam-lhe um ótimo sabor”.
Mas a cerveja parou de ser produzida na velha Fábrica e eis que, mais uma descoberta nos surge:
“Ao longo dessa história, a pequena fábrica foi assumindo real importância na vida do bairro. Fonte de emprego, ponto de referência, face antiga de uma época progressivamente desfigurada, elemento poluidor. Desativada recentemente, a velha fábrica ainda respira cercada de um supermercado, altos edifícios e cada vez mais envelhecida. A Marquês de Monte Santo é a outrora rua do Bonde. Amaralina não é mais arrabalde – filha rebelde com caminhos próprios – e o morro do Conselho, ponto de encontro entre o sol e mar, vai sendo rapidamente ocupado. Desabam casarões, o povo já não é tão festeiro, e as festas ou desapareceram ou perderam seu brilho. Mas, o Rio Vermelho, seus filhos paridos e/ou adotados, não passaram uma borracha nesta demorada e persistente história de amor. Esta é quarta descoberta.”
O Movimento
Conversa vai, conversa vem, as ideias começam a surgir para algo fazer. Lina Bo Bardi já havia aportado pelas terras da Bahia deixando marcas indeléveis, sendo o Unhão e sua linda escada interma, talvez, o sinal mais marcante. Não estando mais por aqui, de volta à São Paulo, ela projeta o Centro Cultural SESC Pompéia, que também ocupava uma antiga fábrica. Inaugurado em 1982, o projeto de Lina foi todo centrado no resgate da antiga fábrica que lá funcionava, mantendo os antigos galpões, incluindo um córrego que por lá passava. Aquilo nos fascinava e, evidente, aquela fábrica abandonada no Rio Vermelho era um prato cheio para começarmos a agitar a cidade com algo na mesma linha. Começamos a nos encontrar e dois lugares nos abrigavam com mais frequência: o bar 68, claro, e a livraria Literarte que, naquela época já havia deixado a galeria que liga a avenida Sete com a Carlos Gomes e se instalado na parte de trás da Biblioteca Juracy Magalhães. Era um espaço pequeno, mas a rua era grande e lá nos reuníamos.
Entre idas e vindas à velha Fábrica, íamos imaginando o que fazer. Vira e mexe tomávamos corridão de dois ou três funcionários que cuidavam dos escombros, pois nos pendurávamos no muro para olhar a parte interna da área e, com o olho comprido, imaginar a sala de cinema, a de teatro, a livraria, a área de convivência para as crianças, a sala de exibições. Desenhávamos na cabeça o Centro Cultural Fábrica do Rio Vermelho, e voltávamos para as nossas reuniões.
Começamos então a buscar as histórias do bairro e da fábrica, e a fazer contato com autoridades. Nada de descobrirmos o nome dos proprietários. Até que, em dado momento, chegou-nos as informações de que a fábrica estava funcionando em Feira de Santana e que queriam vender a área.
Mobilizamos a imprensa. Recepção calorosa.
Começamos a dar entrevistas, agendar reuniões, qualquer um representava o Movimento da Fábrica, não havia hierarquias nem regimentos. Percebemos que a própria imprensa representava o Movimento, pois quando ficávamos meio cansados, surgia uma notinha: “Fábrica parada: como vai o Movimento da Fábrica?” (Jornal da Bahia, 6/11/1984).
Entre idas e vindas, fomos a Brasília visitar, pelo fundo do gabinete, o Ministro da Cultura e entregar-lhe o nosso Manifesto, falar com o IPHAN, visitar e expor o projeto ao Conselho de Cultura do Estado da Bahia, que ainda se reunia na sala de jantar do comendador Bernardo Martins Catharino, onde hoje funciona o Palacete das Artes, na Graça.
Mas o agito era permanente.
Percorríamos as praias do bairro e nos reuníamos nnuma pequena rua que alinhava-se com o muro lateral da Fábrica para criar fatos políticos. Numa quinta feira (22/11/1985), promovemos na rua em frente à Fábrica o lançamento do livro Diário da Crise, com a presença, “in carne ed ossa, pô!”, de Fernando Gabeira, que estava no auge por ter voltado do exílio e frequentar as praias do Rio de Janeiro, de tanguinha de crochê, para delírio da mídia e da moçada. Juca Ferreira, que já estava na Bahia com a gente, também estava retornando do exílio e era importante reforço ao Movimento.
Fazíamos, no mesmo local, pichações do muro e, com isso, pretendíamos marcar para a cidade a atuação do movimento e ainda promover um “pintar ao entardecer” [“pinte lá… e pinte!”]
Fizemos muito. Foram dois anos intensos de agito, sempre com slogans que marcaram o movimento e, claro, coerente com a época. A criação das artes, sempre de Nildão e Renatinho da Silveira, refletia o momento e o nosso espírito. Nossa marca ficou sendo “Transar a Fábrica – vamos preservar um pedaço de nossa memória”
Mas o movimento, apesar de animado e relativamente forte, não era suficientemente forte para enfrentar o poder do capital.
Pressionávamos a prefeitura. Os vereadores se mobilizavam, alguns até iam às nossas reuniões. Em 26 de março de 1985, a Câmara dos Vereadores de Salvador fez indicação ao governo do Estado e à Prefeitura de Salvador sobre a “necessidade de promover a imediata desapropriação para fins de utilidade pública da Fábrica de Papel da Bahia S/A (…) visando a criação de um espaço de cultura e lazer para a cidade”
O prefeito Manoel Castro não nos respondia, mas terminou por montar um grupo de trabalho para tratar do tema. Em novembro de 1984, aconteceu finalmente uma reunião com a prefeitura, o Movimento e os representantes do grupo empresarial Vinnewisk, donos do imóvel, ocasião que nos foi apresentada a proposta de cessão de 1/3 da área para a Prefeitura, que destinaria para o tal uso cultural, e, em troca, a autorização para construção de um posto de gasolina no local, incluindo a derrubada da chaminé.
Em nota oficial (muito chique o nosso movimento!), repudiamos imediatamente a proposta e continuamos a mobilização. Reconhecíamos a dificuldade financeira da Prefeitura, mas deixávamos claro nossa intenção maior: “não exigimos que a Prefeitura compra a Fábrica, reivindicamos que ela compre a ideia.”
Entre tantas outras matérias na imprensa baiana, em 10/11/1984, esse Correio publicou matéria com o resultado da coletiva que o Movimento convocou para a rua em frente à Fábrica, como sempre fazíamos, para anunciar que não aceitaria a referida proposta. Na matéria em questão, é reproduzida a fala de apoio de Caetano Veloso ao saber da proposta: “Queremos a fábrica, não um pedacinho de quintal dela. A fábrica é a fábrica, é a fábrica”
Não havia jeito de sensibilizarmos o prefeito Manoel Castro.
Como já disse, tivemos manifestações do Conselho de Cultura do Estado da Bahia, do IPHAN, de artistas de todos os segmentos, e, depois da proposta do posto, provocamos e conseguimos que Jorge Amado chamasse a imprensa para, de sua casa na rua Alagoinhas, manifestar um apoio direto ao Movimento. Jornal do Brasil (24/04/85, p. 6): “Jorge Amado quer espaço para a cultura: ‘Como morador do Rio Vermelho, como escritor, como baiano, quero dar o meu total apoio a esse movimento, que é apoiado também por figuras da importância de Caribé, Caetano Veloso e Gilberto Gil. (…) Faço um apelo ao amigo Manoel Castro – um excelente Prefeito, a meu ver – para que não permita que ali se instale um posto de gasolina.’”
Eu, de gravadorzinho em punho, lá estava acompanhando tudo e gravando a fala do grande escritor baiano.
Ouça aqui o depoimento de Jorge Amado na íntegra:
Movimento da Fabrica_audio jorge amado
Os apoios não paravam. A vereadora Eliana Kertész responsabilizou-se para levar um dos nossos abaixo-assinado à primeira dama do estado, Ieda Barradas, como mais uma tentativa de não permitir um posto de gasolina em vez de um centro cultural na velha Fábrica de Papel e Papelão do Rio Vermelho.
A luta e as atividades não paravam.Mas a força do capital e a inércia política dos poderes públicos não permitiram que esse sonho fosse concretizado.
No início de setembro de 1985, começamos a perceber que, na surdina, por dentro dos muros, os proprietários começaram a derrubar partes da edificação. Mais coletiva à imprensa e muito mais repercussão.
Nada disso foi suficiente.
Tínhamos sempre em mente, no desejo e no tesão, a nossa convocação para a cidade, frase que concluía aquele documento inicial e bastante reproduzido: “Participe dessa campanha. Ajude a dar este pedaço do passado de presente para cidade.”
A luta não foi perdida. Perdemos a possibilidade da transformação da velha fábrica em um centro cultural.
Em seu lugar, em janeiro de 1986, entrou em funcionamento um posto de gasolina. E, para nossa irritação, mantiveram ali a chaminé, permanente até hoje.
A irritação inicial com a manutenção da chaminé, vista à época como uma provocação, hoje, para mim, é um marco importante.
Manter a imponente chaminé naquele espaço é legar à história do bairro do Rio Vermelho, uma marca importante da existência de uma fábrica que foi também símbolo de um movimento político e cultural relevante para Salvador na década de 80. Um movimento de moradores que, sabedores da existência daquela generosa área da cidade que abrigou uma fábrica de cerveja, depois de papel e papelão e, por fim, abandonada, poderia ter sido transformada num revolucionário espaço para a cidade, um espaço de educação, cultura e lazer.
Mais ainda, aquela chaminé, poder ser um apito significativo para os difíceis tempos atuais, pois relembra que, lá atrás, um grupo de moradores ousou transformar aquele lugar em um espaço da e para a comunidade.
Quem sabe não façamos ali, num futuro não tão distante, um pequeno (ou grande) Memorial do Movimento da Fábrica? E que seja ele, mais uma vez, marco de uma retomada da luta pelo direito à cidade, pelo retorno à pulsação cultural do Rio Vermelho e de toda a cidade de Salvador.
Link para a matéria no site do correio, clique aqui.
Para baixar o pdf da matéria, clique aqui.
Terminei fazendo um um audiovisual com slides e trilha sonora e depois digitalizei para um vídeo que pode ser visto aqui: