Artigo de Nelson Pretto sobre neutralidade da rede

Internet não é TV por assinatura

Em recente medida já esperada por conta das mudanças políticas levadas à frente pelo governo de Donald Trump na direção de radicais transformações nos direitos da sociedade americana, a Federal Communication Commission (FCC), dirigida por Ajit Pai, decretou o fim da neutralidade da internet nos Estados Unidos. Essa é uma decisão que revoga uma anterior, de 2015, do governo Barack Obama.
Medida legislada para lá poderá ter efeito desastroso em todo o mundo, inclusive aqui no Brasil.
A neutralidade da rede é um dos pilares básicos da internet, desde o seu nascimento. Com ela, não importa o que está passando pela conexão contratada pelo usuário, tudo deve ser tratado com isonomia.
Se em uma casa contrata-se uma conexão de velocidade 10 Mbps por um valor X, com essa conexão a essa velocidade, qualquer usuário que tenha um contrato semelhante, mas com a operadora Y, deverá poder ver filmes, ouvir música, baixar ou publicar vídeos, música ou textos com igual conforto. Isso porque, nem a operadora X, nem a operadora Y, “filtram” o que você está trafegando. Podemos dizer, tecnicamente, que todos os bits são tratados de forma igualitária. É isso que se denomina de neutralidade da rede.
Pois o que se acabou de decretar nos Estados Unidos é a possibilidade dessa filtragem. Assim, lá serão possíveis acordos comerciais entre distribuidores de conteúdo e provedores de internet. Com isso, por exemplo, um acordo da operadora X com um fornecedor de filmes fará com que os clientes dessa operadora assistam filmes com maior fluidez do que aqueles que são clientes de outra operadora que não fez acordo comercial com a tal distribuidora de filmes. Teríamos, assim, algo muito semelhante ao modelo da televisão por assinatura, no qual o consumidor tem que pagar, cada vez mais, em função da ampliação daquilo que ele quer assistir. Obviamente o prejuízo para os pequenos provedores e para os consumidores de menor poder aquisitivo será enorme.
Ou seja, aquilo que sempre foi a marca da internet, o seu potencial democrático de possibilitar uma comunicação todos-todos mais ampla, passa a ser reduzido à capacidade de pagamento do cidadão e aos interesses das grandes operadoras em função dos seus acordos comerciais com outras empresas de redes sociais ou de conteúdo, como Netflix, YouTube, Facebook, Whatsapp e outros. Ou seja, com o fim da neutralidade, as Telecoms “cobrarão” por conteúdo sem serem produtoras desse conteúdo.
Complementarmente, elas passam a se constituir em verdadeiros “pedágios” para a inovação uma vez que qualquer recém-nascida startup precisará pagar para chegar aos usuários da mesma forma que chegará, por exemplo, gigantes como Facebook ou YouTube. Ou então, precisará esperar que os usuários paguem a mais à operadora para acessar o seu serviço. A concorrência entre serviços similares não se dará mais no navegador do usuário, mas acontecerá em contratos entre provedores de conteúdo e Telecoms.
As operadoras de telecomunicações aqui no Brasil (que são praticamente as mesmas no mundo todo) ao longo dos anos vêm fazendo enorme pressão, desde a verdadeira batalha que foi a tramitação do Marco Civil da Internet, para que fosse permitida a quebra da neutralidade da rede sob o argumento que tecnicamente seria possível, com bom senso, não prejudicar o consumidor de menor poder aquisitivo. Óbvio que não podemos acreditar nisso, mesmo porque não se pode construir um país com crenças e sim com marcos legais que fortaleçam a cidadania e a democracia.
O lobby das operadoras foi grande no Congresso Nacional naquele período, inclusive bloqueando a pauta da Câmara dos Deputados por quase seis meses, quando, finalmente, em abril de 2014, foi aprovado e sancionado Marco Civil da Internet, com impedimento claro à quebra de neutralidade da rede.
Esse lobby continua atuando fortemente, tendo ganhado força após o golpe parlamentar que levou ao Planalto o presidente Temer, agora com as tentativas de mudança na composição e funcionamento do Comitê Gestor da Internet (CGI) e intensa atuação das operadoras para a célere tramitação do PL 79/2016 que trata da reforma da Lei Geral das Telecomunicações (LGT).
Sem dúvida, mais batalhas pela frente. A SBPC junto com as suas mais de 140 sociedades científicas filiadas precisam estar atentas e atuantes para não permitir mais uma golpe nos direitos dos cidadãos.
Publicado originalmente no Jornal da Ciência da SBPC.

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