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Entrevista com Renata Mielli – coordenadora do CGI

Entrevista completa com Renata Mielli, coordenadora do CGI
por Nelson Pretto, professor da Faculdade de Educação da UFBA e pesquisador visitante na Universidade de Barcelona, desde Madrid/Espanha.
Madrid/São Paulo, 23 de maio de 2023

Publicado em formato reduzido em A Tarde de 09/06/2023, pag. B3.
Clique aqui para o pdf ma matéria no jornal. Acima o áudio completo da entrevista:



Renata Mielli
 
O debate sobre o PL 2630, a Lei  brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, também conhecido como PL das Fake News, relatado pelo deputado Orlando Silva (PCdoB/RJ) tem sido intenso envolvendo diversos setores, entre os quais o Comitê Gestor da Internet (CGI) que publicou recentemente duas importante Notas de Esclarecimentos e está realizando uma Consulta Pública sobre o tema. O CGI foi criado por um Portaria Ministeriais em 31 de maio de 1995 sendo responsável pelo estabelecimento de diretrizes estratégicas e técnicas para o funcionamento da internet no Brasil. Sua constituição é multissetorial, ou seja, envolve representação do governo, dos setores empresariais acadêmicos e do terceiro setor. Desde a sua fundação nunca havia sido coordenado por uma mulher, o que ocorre agora com Renata Mielli, que, além disso, há mais de 30 anos militante pela democratização da comunicação no Brasil. Nessa entrevista, realizada pela web com o uso do sistema Conferênciaweb/RNP, entre Madrid/Espanha e São Paulo/Brasil, Renata analisa o próprio CGI e os grandes desafios postos pelo PL 2630 para o futuro da internet no Brasil.


Nelson Pretto (NP): Como é, depois de 28 anos, o Comitê Gestor da Internet (CGI) ter a primeira mulher como coordenadora geral. O que representa isso para você e para o CGI?

Renata Mielle (RM): De alguma forma isso é um reflexo da mudança na participação das mulheres nas discussões que envolvem a internet no Brasil e tem relação direta, também, com a luta pela participação da mulher em espaços de poder, pelo maior protagonismo feminino nos temas de interesse nacional. Minha indicação como primeira mulher como Coordenadora do CGI, tem relação com todas essas lutas que tem sido desenvolvidas pelas mulheres há mais ou menos 30 anos, ou pelo menos desde a redemocratização [do país, 1985]. Há 28 anos atrás, quando o CGI foi constituído, a comunidade científica, acadêmica e comunidade das organizações que atuavam no campo de telecomunicações ou de tecnologia era essencialmente composta por homens. Isso hoje mudou, hoje você tem um número considerável de mulheres atuando nas ciências da computação e na engenharia. Desde os debates [para a construção] do Marco Civil da Internet [Lei 12965/2014] a gente vê um crescimento grande de organizações do movimento social interessados em discutir os temas da internet que até então era vista de uma forma muito tecnicista. Não tinha movimento social envolvido e quando você passa a envolver movimento social, as organizações de direitos digitais nascem naquele momento, você também aumenta a participação das mulheres. Então, eu vejo como reflexo de uma mudança na própria composição da comunidade que debate a internet no Brasil. Para mim, então, é uma grande responsabilidade porque hoje no CGI temos duas conselheiras mulheres eleitas pelo terceiro setor, uma mulher conselheira eleita pelo setor acadêmico e temos, se não me engano, mais duas mulheres além de mim representando o poder público. Então, a gente vai crescendo comunidade de mulheres e vamos tendo a responsabilidade de sermos respeitadas e ouvidas nesse ambiente ainda tão masculino.

NP: Poderíamos aplicar mais ou menos esse mesmo raciocínio ao fato de você também vir do terceiro setor?

RM: Essa é outra coisa que eu acho que é uma mudança grande de paradigma. Não é apenas o fato apenas de eu ser a primeira mulher, mas eu sou a primeira mulher que vem não exatamente da comunidade técnica e que também não vem de uma trajetória do poder público. Eu atuei durante os últimos 30 anos da minha vida na luta pela democratização da comunicação no Brasil, sou essencialmente uma militante do movimento social brasileiro. Essa é outra quebra de paradigma muito importante, diria que talvez até mais importante do que ser mulher, porque é de fato uma mudança de olhar sobre como se constrói as práticas políticas dentro de um espaço de governança multissetorial. É claro que hoje eu sou governo, estou no MCT [Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação], tive a honra de receber o convite da Ministra Luciana Santos para assumir essa tarefa, minha condução é construída também em diálogo com o Ministério, a partir das visões estratégicas que o Ministério e o governo tem, mas sempre com essa perspectiva, com uma trajetória de acúmulo que vem do movimento social. Acho que isso até causou no primeiro momento algum tipo de temor, mas aos poucos também a gente vai mostrando para as pessoas que o movimento social é composto por gente que tem as melhores intenções de construir consensos e não impor de forma taxativa determinadas posições, mas tem mesmo o papel de construção de consenso e esse é o papel da coordenação do CGI, escutar e a partir da escuta buscar a produção de consensos. No movimento social a gente já faz muito isso.

NP: Você falando dos movimentos sociais. me vem à memória os maus momentos que o CGI passou no governo passado desconsiderava totalmente os Conselhos. Além do seu envolvimento histórico na luta pela democratização da comunicação, você também já estava envolvida na questão da internet. O CGI correu perigo no governo passado?

RM:Naquele momento houve um alerta muito grande, um temor, porque o governo acabou com todos os espaços de participação social, exceto aqueles que estavam previstos em lei. A gente teve bastante receio de que isso alcançasse o CGI [… e isso não aconteceu] principalmente porque ele era um espaço multissetorial que tinha atribuições previstas no Marco Civil da Internet. Então, veja como foi importante a luta que nós fizemos durante os debates do MCI, de criar obrigações no escopo da missão do CGI prevista no decreto [de sua instituição], mas a existência da menção a ele no Marco Civil da Internet foi esse um fator de proteção importante do CGI e esse é um dos motivos que fez com que o CGI se mantivesse em funcionamento durante o governo Bolsonaro. Mas não foi só isso, acho que também houve ali uma percepção do governo que acabar de forma discricionária com a instância de governança da internet reconhecida internacionalmente, referência em todos os debates de internet, que tem atribuições estratégicas para o pleno uso da internet no Brasil, isso seria algo muito complicado para o governo. Acho que naquele momento também, por conta de um grau de desconhecimento de como funcionavam as coisas. Isso e deu do ponto de vista institucional, mas do ponto de vista político [o CGI] passou por uma grande dificuldade durante o governo Bolsonaro […] com coordenadores indicados com um objetivo claro de evitar posicionamentos e iniciativas do CGI que pudessem representar algum confronto ao governo, então, ate pelo menos até o final de 2021 foi um momento muito difícil. Depois houve uma mudança na coordenação e se conseguiu ter o [José] Contijo que foi um coordenador que teve um papel importante para recompor minimamente o ambiente de diálogo, debate e de encaminhamento das questões.

NP: Com essa turbulência vivida pelo CGI, não seria necessário uma solução mais definitiva para o CGI, já que hoje, a cada três anos é preciso que o governo publique uma portaria para viabilizar a sua nova composição?

RM: Em 2017 a comunidade que atua nos debates da internet pressionou de certa forma os conselheiros do CGI e naquele momento foi construída uma consulta para receber contribuições sobre como deveria ser um processo de, digamos, de modernização, um desenho institucional, uma atualização do CGI diante dos novos desafios da internet, porque a internet de 2023 é totalmente diferente da internet de 1995, não é? Novas questões são colocadas e o CGI precisaria se readequar a esse novo momento da tecnologia, do desenvolvimento e do papel da internet na sociedade. Essa consulta reuniu uma série de contribuições e gerou um relatório bastante interessante, mas isso foi em 2017 e já enfrentou um primeiro ano do governo Bolsonaro e nada do que estava ali pode ser implantado. Então eu diria que nós precisamos retomar essa discussão, talvez reaproveitar o trabalho e a consulta que foi realizada naquele momento, não descartar esse trabalho de maneira nenhuma, mas atualizá-lo porque já tem cinco, seis anos e também nós já passamos por muitas modificações. Creio que esse vai ser um desafio do próximo mandato, isso porque vamos iniciar agora um processo eleitoral para eleição dos novos conselheiros que representam a sociedade civil, setor empresarial, acadêmico e terceiro setor, um processo que deve se concluir no final de novembro. Isso está muito atrasado porque é, de novo, o governo é quem convoca o processo eleitoral, através de uma portaria interministerial. Isso deveria ter sido convocado ano passado e por uma série de motivos que a gente sabe quais são, não é?, acabou não acontecendo. Então eu acho que a gente deve iniciar essa conversa, mas essa é uma tarefa que precisa ser amadurecida para quem sabe a gente pensar numa reformulação que coloque o CGI numa condição de maior protagonismo porque ele tem capacidade técnica, política e autoridade internacional para ter mais protagonismo nos debates sobre o uso e desenvolvimento da internet no brasil.

NP: Você colocou duas palavras que são fundamentais: a mobilização para construção do Marco Civil da Internet e uma atualização de tudo isso. Queria saber um pouquinho sobre o artigo 19 do MCI que fala da responsabilização das plataformas. Como é que você e o CGI estão pensando sobre ele para podermos, então, entrar no famoso PL 2630, conhecido como PL das Fake News?

RM: Esse é um tema muito caro para o CGI, que elaborou o decálogo da internet que são os princípios que norteiam uma governança democrática na internet no Brasil, sendo que um dos princípios é exatamente a inimputabilidade dos intermediários, o termo é bem pomposo para dizer que, naquela época, o que se colocava como um princípio importante é que os tais intermediários da internet, mas veja, há 15 anos atrás os intermediários tinham uma característica um pouco diferente, não é?, eles não poderiam ser responsabilizados pelos conteúdos dos terceiros porque isso poderia gerar um ambiente de insegurança jurídica e de distorção, com uma enxurrada de ordens judiciais que poderia ser um entrave para o pleno desenvolvimento de novas aplicações da internet. Sobre o artigo 19 é muito importante dizer que na penúltima reunião do CGI - eu já estava coordenadora - nós aprovamos duas resoluções - fazia alguns três anos, eu acho, que o CGI não aprovava resoluções de mérito, de conteúdo em torno de temas da internet - e uma dessas resoluções foi exatamente um posicionamento sobre a proposta de mudança do regime de responsabilidade prevista no PL 2630 e essa resolução tem uma característica muito importante que é reafirmar a nossa posição de defesa do modelo previsto no artigo 19 do Marco Civil da Internet como modelo preponderante para a responsabilidade dos intermediários, inclusive o NIC [Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR órgão do CGI] foi foi aceito como amicus curiae da ação que será julgada no STF. A grande polêmica e confusão que o debate sobre responsabilidade das plataformas de rede social e ferramentas de busca trouxe é que o artigo 19 do MCI fala em provedores de aplicação de internet, ele não fala de rede social, não fala de ferramenta de busca, mas ao mesmo tempo fala, porque a plataforma de rede social e a ferramenta de busca são provedores de aplicação de internet, mas elas são um tipo de provedor de aplicação e todo o resto que existe na internet também é provedor de aplicação. Vamos pegar um exemplo: o WordPress [WP], que é um sistema de administração para desenvolvimento de páginas web, que tem uma versão gratuita e uma versão mais avançada que é paga, e que, digamos assim, é o sistema que deve estruturar pelo menos metade ou mais dos sites da internet no Brasil. Então, ele é um provedor de aplicação de internet, ele é um intermediário e nesse caso um intermediário neutro, e o regime de responsabilidade do artigo 19 protege o WP - e está certo! - porque ele não pode ser responsável solidariamente porque um site que ele hospeda e publica. O Blogger, que é uma ferramenta oferecida pelo Google para quem quer ter um blog na internet. [...] O blogger é um intermediário neutro, ele não pode ser responsável pelo conteúdo do blog da Renata ou do Nelson. Então, o Marco Civil da Internet protege esse tipo de intermediário e, portanto, derrubar o artigo 19, julgá-lo inconstitucional, só vai trazer insegurança jurídica e, pior, na minha avaliação é trazer uma enxurrada de iniciativas que vão ter como consequência a restrição da liberdade de expressão dos usuários da internet no Brasil. Agora, isso significa que o artigo 19 [do MCI] não deva ser modificado? Isso significa que ele não precisa de algumas flexibilizações? Não, ele pode e deve ser atualizado a luz dos novos desafios e é por isso que o CGI se posicionou favoravelmente aos dois dispositivos do PL 2630 que flexibilizam, ou seja, mudam o regime de responsabilidade do artigo 19 para redes sociais e ferramentas de busca - que é o que está explícito no escopo da lei - em algumas situações. Eu acabei demorando um pouco nessa pergunta porque tem muita confusão sendo feita em torno do artigo 19 e se a gente não procurar explicar, o senso comum acaba liderando o debate jurídico e político e isso não vai trazer bons resultados para o uso da internet no brasil.

NP: Então, na sua avaliação, foi positivo o STF ter adiado esse julgamento do Artigo 19 do MCI?

RM: Eu acho que o STF pautou esse julgamento como uma forma de pressão, foi um movimento político para pressionar o Congresso Nacional a votar algo que modifique o artigo 19 do MCI, mas eu não sei se o que está previsto de mudança para o artigo 19 no projeto do PL 2630 atende, digamos assim, a visão que está sendo construída dentro do STF. Então, não sei se é positivo, mas pelo menos é um sinal de que eles estão aguardando um posicionamento da Câmara e é preciso que a ela retome urgentemente o debate do PL 2630 para que se aprove esse projeto e tenha mais um argumento, e agora legal, para levar ao STF e evitar o julgamento da inconstitucionalidade [do artigo 19] porque isso vai bagunçar toda a discussão sobre internet no brasil.

NP: Quer dizer que na sua avaliação o PL 2630 poderia resolver os problemas, digamos, com uma atualização no artigo 19 sem efetivamente mexer no Marco Civil da Internet que foi uma construção histórica coletiva?

RM: Eu acho que sim. Se ele resolve os problemas criados por esse tipo de aplicação que são as plataformas de rede social e ferramenta de busca, resolver é muito taxativo, não é?, mas acho que ele dá um passo importante para aumentar a responsabilidade deste tipo de aplicação da internet (rede social e ferramenta de busca) no sentido de proteger a sociedade contra circulação de conteúdos ilegais e nocivos, criando pesos e contrapesos para ao mesmo tempo proteger a liberdade de expressão sem alterar um regime de responsabilidade para o conjunto das aplicações da internet no Brasil, o que poderia trazer uma insegurança jurídica muito grande para para internet.

NP: Entrando especificamente no debate sobre o PL 2630 – que é a proposta de uma Lei brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, na sua visão, quais são as grandes questões que precisam ser enfrentadas?

RM: O PL é um passo inicial no debate sobre regulação dessas grandes plataformas digitais no Brasil. O Marco Civil da Internet não regula plataformas digitais,ele não debate moderação de conteúdo, ele é uma lei principiológica que define na forma de princípios deveres e direitos dos usuários da internet no Brasil como um todo. Esta legislação que estamos discutindo agora tem outro caráter, ela tem um caráter de olhar um tipo de modelo econômico que usa a internet para se estabelecer na sociedade e busca regular esse modelo econômico que hoje não possui nenhum tipo de regulação. Então, o PL 2630 é um passo inicial nesse debate. E para iniciar esse debate, quais são os aspectos que o PL enfrenta? Primeiro, obrigações de transparência por parte dessas empresas que atuam no Brasil, pois elas não prestam nenhum tipo de informação mais detalhada e mais relevante para que a sociedade brasileira e o poder público possam compreender os impactos da atuação dessas plataformas nas várias áreas da sociedade brasileira. Então, desde a informação de quantos usuários essas plataformas possuem no Brasil, que para elas são dados sensíveis porque tem relação com a bolsa de valores, valor de mercado, e por isso elas não gostam de dizer quantos usuários tem, até informações mais granularizada sobre as moderações de conteúdo que elas já realizam: quantos conteúdos são moderados por termos de uso, quantos são por ordem judicial, quais as motivações principais que levam uma plataforma moderar um conteúdo, quantas postagens moderadas são restituídas por questionamento do usuário… Ou seja, são informações que dizem respeito ao direito do usuário compreender como seus conteúdos estão sendo manejados por essas plataformas. Até um conjunto de outras [como sobre] a contratação das equipes de moderação: são contratadas no Brasil?, falam português como língua materna?, tem diversidade na composição dessas equipes? Sobre a transparência de algoritmos de recomendação que é a base do modelo de negócios e que tem gerado a polarização, digamos assim, da sociedade brasileira porque a recomendação vai se dando dentro daquele mesmo nicho e você vai recebendo cada vez mais os conteúdos antivacina, por exemplo. Então, é uma série de obrigações que as plataformas não querem oferecer, seja porque é sensível para o modelo de negócios delas, seja porque dar essas informações empodera a sociedade exatamente na produção de políticas públicas para melhorar o debate público. Obrigações de transparência sobre publicidade. Uma questão que estamos colocando no projeto que temos chamado de devido processo, porque hoje a relação do usuário com a plataforma é totalmente assimétrica, você não tem, por exemplo, um SAC. Se você quiser falar com a plataforma, reclamar de alguma coisa que aconteceu, se uma postagem sua saiu do ar, com quem você conversa, como você contesta? Como você pede mais informações sobre aquela ação da plataforma sobre a sua conta? Não tem! Então, o projeto cria uma série de obrigações e acho que essa é a grande importância desse projeto e é o primeiro passo de uma regulação que tem sido feito em vários países do mundo. A União Europeia criou uma série de obrigações já antes do DSA (Digital Service Act – Lei dos Serviços Digitais) e do do DMA (Digital Markets Act – Lei de Mercados Digitais), eles apenas aprofundaram isso. Outros países também, o Canadá tem discutido questões envolvendo remuneração de conteúdos jornalísticos, na Austrália também, então, é um conjunto de medidas que dá um passo inicial para regulação dessas empresas.

NP: Você acha que os temas da remuneração de conteúdo jornalistico e do direito autoral deveriam estar nesse PL ou poderiam ir para outro lugar, como está propondo a deputada Jandira Feghali com outro PL?

RM: Eu acho que a questão dos direitos autorais, que foi incluído recentemente no projeto, é um tema muito específico, pois PL 2630 em seu escopo não trata das plataformas de streaming , ele regula uma parte do ecossistema de plataformas digitais, bem especificamente ferramentas de busca, rede social e serviços de mensagem. Trazer outras aplicações de internet que tem modelos de negócio muito específicos como o das plataformas de streaming traz uma confusão no projeto porque tem uma série de obrigações ali que não cabem para esse tipo de plataforma. Então, eu acho que o mais adequado seria tratar isso em outro projeto de lei. Já a questão de remuneração de conteúdo jornalístico, que foi um tema bastante polêmico durante toda a tramitação do PL, tenho a impressão de que apesar de toda a polêmica que ele gerou, tinha-se alcançado um certo consenso entre os vários setores que discutem o assunto, entre as várias organizações que discutem o assunto, em torno da redação que estava pactuada no 2630. Assim, ele pode ser tratado em outro projeto de lei, talvez fosse até melhor um projeto de lei específico para esse assunto porque a questão do jornalismo é uma questão delicada, não é? Talvez sim! Mas a gente também sabe como é que acontecem os processos políticos, não é? Eu tenho medo que ao sair do 2630, um debate que acabou sendo feito pelo menos nos últimos dois anos e que se chegou a uma redação mais ou menos convergente, ao sair do 2630, esse trabalho se perca e a gente tenha uma redação que não atenda minimamente às preocupações dos setores mais variados envolvidos na produção de jornalismo no país.

NP: De uma forma mais direta, pois eu acho que isso é importante e precisa ficar bem mais claro, aqui na Europa tem um debate, um medo, de que a ideia de uma necessária regulação dos processos termine chegando à regulação de conteúdos. O PL 2630, na forma como ele está, traz esse temor?

RM: Esse é um debate muito importante. Quando o PL 2630 começou a circular, o foco dele era conteúdo e a ação da sociedade civil, do movimento social, das entidades direitos digitais, foi o de mudar o enfoque do projeto, tirar o foco do conteúdo e botar o enfoque num projeto mais de regulação das plataformas e de processos sistêmicos. Depois do 8 de janeiro, que trouxe toda aquela situação política que foi realmente chocante, não é?, talvez foi o ápice de percepção do conjunto de atores em relevantes da sociedade sobre como essas plataformas estavam sendo usadas para promover discursos golpistas e ataques ao Estado Democrático de Direito, algumas contribuições que vieram ao projeto dialogam, em certa medida, com análise de conteúdo. Então, hoje, o projeto 2630 tem duas sessões importantes. Uma é um “dever de cuidado” que é um conceito parecido com o que tem no DSA [da leigislação Europeia], mas que não é exatamente aquilo que lá está, que é na verdade um dever de cuidado para que a plataforma mitigue possíveis danos causados pela circulação de conteúdos ilegais e aí o PL 2630 lista um conjunto de conteúdos que deveriam ser alvo desse dever de cuidado, conteúdos que estão tipificados como crime na legislação brasileira, crime contra o Estado Democrático de Direito, alguns crimes que estão listados. De alguma maneira isso tem um enfoque em conteúdo, mas não no conteúdo individual. Junto com isso tem análise de riscos sistêmicos também. Então, se ficar comprovado que a plataforma não cumpriu esse dever de cuidar, ela pode, a partir desse momento, ser alvo de um protocolo emergencial e aí ela é passa a ser responsável solidária por conteúdos tipificados como crime na lei. Mas o que foi construído ali protege o conteúdo individual, a questão ali não é se a Renata postou um conteúdo, mas se há um conjunto de ações sendo desenvolvidas de forma difusa na plataforma para ter o objetivo de criar um movimento articulado, ilegal, dentro de uma rede social. Então, você não olha o conteúdo individual, mas de alguma maneira você acaba tendo uma obrigação de monitoramento de conteúdo sem dúvida nenhuma. Isso é uma situação delicada? É, mas a proposta procurou criar pesos e contrapesos para mitigar efeitos negativos desse tipo de monitoramento. Não tem não tem saída perfeita para esse problema, é uma questão que a gente vai ter que testar para sempre buscar proteger a liberdade de expressão.

NP: Até porque não tem situação perfeita para um tema delicado, tanto para a legislação como para aqueles que promovem esse tipo de ação que geram, como geraram no início de janeiro ataques às instituições, depois às escolas, estimulando comportamentos violentos na sociedade. Ou seja, uma situação complexa demanda uma solução legal complexa também, não é?

RM: Exatamente, e eu acho que a gente precisa olhar o conjunto dos comandos que estão previstos na lei. Acho que a medida em que a gente tiver todas as informações do relatório de transparência, do relatório de transparência em torno do risco sistêmico e devido processo, que é um relatório diferente do relatório geral de transparência, das auditorias, tudo isso vai nos fornecer informações preciosas para inclusive formular novas políticas públicas mais adequadas para atacar os fenômenos negativos que acontecem no âmbito dessas plataformas. Essa é uma primeira regulação e que está sendo feita quase que às escuras porque como essas plataformas não oferecem a informação necessária para a produção de políticas públicas adequadas, a gente fica nesse tempo zero [pois] quando a gente tiver já um, dois, três relatórios granularizados com todas essas informações, a sociedade brasileira e o poder público vão ter condições melhores de produzir medidas mais eficazes contra quem faz o abuso dessas plataformas e em defesa de quem faz o uso legítimo.

NP: Isso obviamente nos leva a pensar sobre quem vai analisar esses relatórios e quem vai punir os eventuais crimes que estejam sendo cometidos. Como ficamos com retirada da proposta de uma autoridade independente no PL? Qual é nossa saída? Seria o CGI?

RM: [risos] O CGI na reunião de final de março, que aprovou aquela resolução sobre o artigo 19, também aprovou uma resolução aceitando, digamos assim, ou concordando, com as atribuições previstas para o CGI na versão protocolada do relatório do deputado Orlando Silva. Com a consideração de que essas atribuições não podem, não devem ter caráter de fiscalização e sanção, porque o CGI não tem competência de órgão regulador. Nós somos um comitê de governança multissetorial, não temos capacidade para fazer enforcement, para aplicar sanção. Assim, a posição do CGI hoje é de considerar que o CGI deve ter algum papel dentro da arquitetura regulatória definida pelo Estado para fazer o acompanhamento dessa nova legislação, uma posição dentro das atribuições atualmente previstas pelo CGI, porque nós temos condições de contribuir com esse debate. Agora, [sobre] quem regula, quem faz o papel necessário para aplicação de uma lei que tem comandos tão complexos, isso é uma questão que o CGI não tem posição ainda. Nós estamos com uma consulta pública sobre regulação de plataformas em curso neste momento e um dos eixos é a questão de quem regula. Estamos buscando ouvir a sociedade através de uma consulta com opiniões [sobre] qual deve ser essa esse escopo regulatório, essa arquitetura regulatória. Estamos chamando as pessoas a contribuir com opiniões, depois o CGI vai avaliar essas contribuições e talvez se posicione num momento adequado sobre sobre essa questão. Hoje nós não temos essa opinião. Há várias questões colocadas, a Anatel tem se colocado...

NP: Seria a Anatel essa função?

RM: A Anatel está se colocando como a possibilidade para exercer essa função. A ANPD [Agência Nacional de Proteção de Dados] soltou uma nota também preocupada porque no projeto de lei há questões relacionadas com a proteção de dados pessoais e a privacidade, que é a atribuição deles. Há questões de concorrência da ordem econômica que poderiam ser atribuídas, por exemplo, ao CADE [Conselho Administrativo de Defesa Econômica]. Então, a regulação das plataformas digitais, na minha percepção, isso não é uma opinião do CGI porque nós não temos uma opinião ainda formada a respeito disso, é que trata-se de uma área da economia que não possui de forma explícita um espaço ideal para ser alocado. Hoje o Brasil não tem uma agência reguladora, uma autoridade, que já possua todas as competências para cuidar daquilo que está previsto no 2630. Então, ainda que se trabalhe com as agências já existentes, todas elas precisariam necessariamente passar por algum tipo de mudança, por algum tipo de mudança na sua direção, no seu corpo técnico porque nós estamos tratando, por exemplo, de questões que envolvem, sim, conteúdo como a gente já falou aqui, então uma agência que é eminentemente técnica não tem expertise para fazer discussão sobre conteúdo. Então, independentemente de qual seja o espaço encontrado, algum já existente ou um novo, ele vai precisar ser constituído a partir de servidores e de uma diretoria que tenha capacidade de ter esse olhar multidisciplinário, diria assim, para atender ao conjunto de atuações que a lei propõe. Então, acho que esse é o grande desafio que o Estado, o governo, vai precisar enfrentar, porque a criação ou modificação de uma agência reguladora é prerrogativa do Poder Executivo. Então essa fica uma tarefa importante que vai precisar ser olhada com carinho pelo pelo governo.

NP: Eu queria fechar falando um pouco do hoje e do futuro. Na década
de 1990 eu mesmo era um encantado com a internet, imaginando ela como sendo um grande meio revolucionário comunicação todos-todos. Te pergunto: sequestraram a nossa internet?

RM: No momento sequestraram a nossa internet, minha percepção é que sim. E a minha resposta é menos como coordenadora do CGI, mas mais como doutoranda, pesquisadora na área da comunicação. Aquela internet dos anos 90 que encantou pensadores intelectuais como Pierre Levi, o próprio [Manuel] Castells, que originou o manifesto do Perry Barlow, aquela era ainda uma internet nascente, ela estava apenas engatinhando no mundo e acho que houve uma certa ilusão inocente de que o sistema capitalista não teria e não encontraria os mecanismos de fazer valer a sua regra básica de que tudo tem um monopólio no capitalismo. Essa é uma das regrinhas básicas do sistema capitalista. E sob a internet se constituíram grandes monopólios internacionais que hoje são empresas mais poderosas política e economicamente do que a grande maioria dos países do mundo. Se existisse um G20 que fosse um mix entre nações e as empresas, Facebook/Meta, Apple, Alphabet provavelmente comporiam o G20, [e isso demonstra] o gigantismo que essas empresas alcançaram. E é uma distorção do capitalismo, isso traz problemas graves, sociais, econômicos e geopolíticos, então, em certa
medida, sim, as pessoas não acessam mais internet, as pessoas acessam as redes sociais. Então, o uso da internet foi sequestrado por essas grandes plataformas.

NP: O sonho acabou?

RM: Pois é, eu não queria terminar com uma visão pessimista, eu acho que sim, hoje elas sequestraram, mas acho que todo o trabalho que a sociedade civil, os espaços internacionais de governança da internet, os governos democráticos, os organismos internacionais de direitos humanos, todos eles precisam se mobilizar para fazer um movimento de, eu diria assim, de reocupação da internet, de reocupação da www, de fortalecimento dessa profusão de possibilidades que a internet oferece e que estão sendo hoje sub aproveitadas em razão do gigantismo das plataformas. Então, eu não sou exatamente uma pessimista, mas acho que é muito trabalho a ser feito para que a gente recoloque as coisas no seu devido lugar e por isso é tão importante regulação dessas grandes empresas na perspectiva de que a gente possa, de novo, ter uma internet que represente um avanço democrático para a sociedade mundial.

NelsonPretto

Professor (e ativista) da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

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