Armes invisibles als ulls

Iniciei este texto sob forte emoção, ao som de palmas, gritos, jogos de luzes forjados pelas lâmpadas das varandas vizinhas e fogos de artifício que ecoavam do alto da montanha de Tibidabo. Pela segunda noite, Barcelona aplaude aos profissionais que estão nos hospitais, nos laboratórios, nas ruas, trabalhando para frear o avanço do Covid-19. São mais de 7.700 infectados na Espanha e 288 mortes em consequência do contágio (até o momento de fechar este texto).
Todo esse cenário devastador, como já propagado pela mídia internacional, tomou proporções inimagináveis há cerca de quatro dias, quando o estado de emergência nacional foi anunciado pelo presidente do Governo da Espanha, Pedro Sánchez, cuja esposa também contraiu o vírus. Desde então, universidades, escolas, bibliotecas, órgãos de atendimento público, centros esportivos, museus começaram a fechar suas portas.
Como em um efeito em cadeia, negócios, espaços públicos e privados de lazer, jardins, bares, boates e pontos turísticos se transformaram em locações para The Walking Dead. Há uma semana, não poderia imaginar ser possível atender o pedido da prefeita Ada Colau de “bajar el ritmo” de Barcelona.
Eu, que achava que tinha vindo para capital da Catalunha viver a experiência inédita de um doutorado sanduíche na Faculdade de Educação da UB, descobri que o que vim buscar está impregnado na cultura, na educação e na postura de corresponsabilização pelo que é o bem comum. O que tenho encontrado nos detalhes é poesia e beleza que emergem do caos. Em um conto viralizado recentemente em catalão, uma voz doce narra como as crianças juntas decidiram lutar contra o corona vírus: ficando em casa porque eles sabiam que eram as suas pernas. Em uma referência direta ao Pequeno Príncipe, o conto finaliza propagando que as batalhas são ganhas de verdade por armes invisibles als ulls, do catalão, armas invisíveis aos olhos. E assim tem sido aqui.
As pessoas saíram das ruas, mas criaram redes de trocas, como por exemplo a de dicas de atividades lúdicas para fazer com as crianças nesses próximos 15 dias de confinamento; muitas empresas dispensaram seus funcionários e garantiram que não vão fazer demissões; outras, criaram condições para o homeoffice; as universidades estão fomentando seus ambientes virtuais; hospitais privados se colocaram à disposição da saúde pública. E com isso, aos poucos, vou descobrindo o que estou fazendo aqui. O caos pessoal gerado pelo contexto incluiu o retorno precoce de minha filha, de 4 anos, e meu companheiro para o Brasil. Tínhamos ainda duas semanas pela frente, viagens marcadas, tickets comprados, a festa de despedida da escola que ela frequentou nos últimos dois meses, Escuela Gaia. Teríamos bolo de cenoura com uma aguardada calda de chocolate. Entretanto, quando esse texto for publicado, Lulu terá chegado ao Brasil, com seu álcool gel no bolsinho. Eles vão direto para um autoconfinamento, que a propósito não tem sido tema nem de orientação no aeroporto de Salvador. Na sequência, farão exame para detectar se contraíram o vírus durante a viagem. Em 48 horas, esperamos que eles possam voltar à casa.
Eu, daqui da janela, bato palma para todas as pessoas que estão envolvidas nessa grande rede de contenção, heroínas e heróis do cotidiano, com suas armas invisíveis, disposto a enfrentar a coroa.

Por Carla Aragão | Doutoranda em Educação – GEC/FACED/UFBA 

Atualmente Carla realiza estágio sanduíche em Barcelona, Espanha.

Este texto fui publicado originalmente na versão impressa do Jornal A Tarde, 16/03/2020, pág. A8.

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