Pensar a educação do campo tem sido um grade desafio para educadores e educadoras brasileiras. Talvez este movimento se diferencie de muitos outros na educação, justamente por estar sendo pensado PELAS pessoas do campo, profissionais da educação e tantas outras pessoas interessadas em um campo mais justo e com condições para que as pessoas ali vivam e trabalhem, e não pensada apenas por burocratas e acadêmicos que nunca passaram pelo campo ou sequer sabem de suas demandas. Por sinal, demandas não faltam neste contexto. É um quadro problemático construído ao longo de décadas, em que a desigualdade (no seu sentido mais cruel) foi extremamente agravada pelo esquecimento (intensional?) dos órgãos governamentais, sendo alimentado por certos setores da sociedade, para os quais é mais vantajoso em sua faceta mais desassistida.
Enquanto que acreditamos que as tecnologias são parte inextricável da educação, suas premissas mais básicas não fazem parte deste contexto.
Desde 2008 vimos acompanhando o curso de Licenciatura em Educação do Campo, da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia, o que nos descortinou este contexto bastante diferente (nem sempre melhor ou pior, mas diferente) das zonas mais urbanizadas: são professores (em sua maioria) com uma formação bastante deficiária, escolas super precárias, políticas públicas inadequadas e insuficientes, condições de infraestrutura sem recursos básicos como água ou luz, agravado por uma condição social desigual, onde grandes proprietários de terra concentram o poder e contratam, em condições questináveis, trabalhadores sem qualquer assistência, dos quais a renda mais fixa é aquela que vem de auxílios como o Bolsa Família.
Em um contexto em que falta tanta coisa, faz sentido construir uma formação tecnológica com os professores que estão sendo formados para atuarem neste contexto? Acreditamos que sim, mas numa concepção bem diferente de tantos “cursinhos” que vemos por aí.
Para entendermos um pouco melhor este contexto, e para pensarmos com coerência a formação tecnológica ali, fomos atrás de referências que nos ajudassem a entender tal quadro. Foi quando encontramos o livro “Por uma educação do campo “* e constituímos um grupo de estudos.
Deste dia em diante, nos comprometemos a, periodicamente, disponibilizar algumas notas das leituras e discussões, para que estas não se restrinjam somente a um contexto acadêmico tão pontual, e que suscitem o diálogo entre diferentes sujeitos comprometidos com esta problemática.
Este livro é uma produção que registra e demarca parte do movimento de luta por uma educação específica, que atenda às necessidades deste contexto, então denominada Educação DO Campo. É escrito por pessoas que tem participado, ao longo dos anos, dos mais importantes movimentos sociais do campo em luta por esta educação, trazendo o registro de parte deste movimento. O livro começa trazendo alguns elementos que caracterizam o contexto do campo, seguindo para documentos de eventos e diretrizes construídas ao longo desta caminhada.
Logo na apresentação, escrita pelos organizadores do livro, são apresentados alguns elementos que marcam o nascimento de um projeto de educação do campo, protagonizado pelos trabalhadores e trabalhadoras do campo e suas organizações sociais. É um testemunho de uma história de lutas pelo direito à educação, específica do campo, pelos sujeitos do campo, com seus saberes, valores, culturas e identidades.
“Onde e em que processos formadores constroem seus saberes e conhecimentos, seus valores, cultura e identidade? Esta pergunta vem sendo feita nas escolas do campo pelas educadoras, pelos educadores.”(p. 07)
O coletivo do campo tem uma história rica que merece ser registrada e contada. Os textos do livro em questão recontam parte destas histórias, sendo que alguns pontos lhes são marcantes:
– O silenciamento.
“Somente 2% das pesquisas dizem respeito a questões do campo, não chegando a 1% as que tratam especificamente da educação escolar no meio rural. […] O rual teria perdido consistência histórica e social? opovo do campo seria uma espécie em extinção? O fim do rural, uma consequência inevitável da modernização? A escola do campo teria que ser apenas um remedo da escola da cidade?” (p. 08)
Os questionamentos lançados nos são particularmente instigantes. A história à qual os autores se referem, passa por vários períodos, cuja análise nos leva a entender a atual distribuição de terras, o movimento das pessoas do campo para o trabalho nas fábricas, a corrida pela mecanização dos processos produtivos dos alimentos, o predomínio das políticas públicas para as zonas mais urbanizadas em detrimento do campo, e, por fim, a escola do jeito como é hoje constituída no campo.
Neste contexto, as tecnologias tem um papel fundamental** . Mas seria o desenvolvimento tecnológico um “vilão da história”? Ou é uma certa concepção de desenvolvimento tecnológico que faz parte de um projeto de sociedade?
E hoje, as tecnologias podem contribuir na caminhada por um contexto mais justo, em que os próprios sujeitos do campo constróem e mostram a sua história?
– O clamor da terra
“o silenciamento e esquecimento não tem mais sentido, e se torna urgente ouvir e entnder a dinâmica social, cultural e educativa dos diferentes grupos que formam o povo do campo. Este movimenteo pretende instigar mais pesquisas […] e sobretudo lutar por maior atenção dos governos […] para seu dever de garantir o direito à educação para milhões de crianças e adolescentes, de jovens e adultos que trabalham e vivem do campo” (p. 09) [grifo nosso]
– Direitos usurpados, negados
Os autores destacam que, mais do que um esquecimento, existe uma “negação” dos diretos das pessoas do campo. Por exemplo, apesar da educação para todos ser um direito assegurado pela Constituição Brasileira, reafirmado pela Lei de Diretrizes e Bases, além de tantas outras, o campo ainda amarga tristes marcas de analfabetismo, evasão, defasagem idade-série, repetência, currículos inadequados e professores com problemas de titulação e os piores salários. Os próprios autores apontam para uma causa deste contexto:
“A escola no meio rural passou a ser tratada como resíduo do sistema educacional brasileiro e, consequentemente, à população do campo foi negado o acesso aos avanços havidos nas duas últimas décadas no reconhecimento e garantia do direito à educação básica” (p. 10)
– A Educação do Campo nasce de outro olhar sobre o campo
Por muito tempo prevaleceu, em diversos setores da sociedade, a ideia de que o campo se apresentava como um lugar atrasado, inferiror, arcaico, projetando o espaço urbano como único caminho para o desenvolvimento. Porém
“a Educação do Campo nasce sobretudo de um outro olhar sobre o papel do campo em um projeto de desenvolvimento e sobre os diferentes sujeitos do campo. Um olhar que projeta o campo como espaço de democratização da sociedade brasileira e de inclusão social, e que projeta seus sujeitos como sujeitos de história e de direitos; como sujeitos coletivos de sua formação encquanto sujeitos sociais, culturais, éticos, políticos. A questão nuclear para as pesquisas e políticas educativas será reconhecer esse protagonismo político e cultural, formador, que está se dando especialmente nos movimentos sociais do campo.” (p. 12) [grifo nosso]
Neste ponto convergimos para os objetivos da formação tecnológica: formar sujeitos autores, protagonistas, que se constróem no diálogo com os conhecimentos já construídos pela ciência (antes acessíveis apenas para os sujeitos próximos aos centros urbanos, inseridos em esferas privilegiadas) e com os saberes locais, que constróem suas soluções no diálogo com outros sujeitos formando redes, que dão visibilidade aos seus problemas, que não se contentam com soluções prontas, que se apropriam das informações para uma vida efetivamente melhor e se colocam como sujeitos autores de ciência e tecnologia. Talvez este seja um dos sentidos mais próprios da palavra “protagonista”.
– Direito à escolarização ressignificado
A concepção de Educação do Campo (que não cabe só na escola) toma a função social e cultural da escola enriquecida na media em que se articula organicamente com a dinâmica social e cultural do campo e de seus movimentos:
“Só há sentido em se discutir uma proposta educacional específica para as necessidades dos trabalhadores do campo se houver um projeto novo de desenvolvimento para o campo, que seja parte de um projeto nacional” (p. 13)
“Consequentemente, exige uma educação que prepare o povo do campo para ser sujeito desta construção. Uma educação que garanta o dieito ao conhecimento, à ciência e à tecnologia socialmente produzidas e acumuladas. Mas também que contribua na construção e afirmação dos valores e da culstura, das auto-imagens e identidades da diversidade que compõe hoje o povo brasileiro do campo” (p. 14) [grifo nosso]
Neste ponto torna-se inegável o potencial das tecnologias, não como meros aparatos técnicos para deixar a escola mais bonita ou atraente (não que isto também não seja importante, mas não é o principal), mas como elemento transformador da escola e, principalmente, da sociedade, porque a escola não se faz se não pelos fluxos para além dos seus portões. Neste sentido, consideramos os sujeitos como protagonistas, autores, formadores e trasnformadores.
– em defesa de Políticas Públicas de Educação do Campo
“No vazio e na ausência dos governos os próprios movimentos tentam ocupar esses espaços, mas cada vez mais crese a consciência do direito e a luta pela Educação do Campo como política pública. Uma política pública que parta dos diferentes sujeitos do campo, do seu contexto, sua cultura e seus valores, sua maneira de ver e de se relacionar com o tempo, a terra, com o meio ambiente, seus modos de organizar a família, o trabalho, seus modos de ser mulher, homem, criança, adolescente, jovem, adulto ou idoso; de seus modos de ser e de se formar como humanos.” (p. 14-15)
Ou seja, o campo como contexto específico, diferente dos outros contextos, com sujeitos capazes de analisar criticamente a sua condição de buscar condições melhores juntos aos setores com responsabilidades para tal. De maneira geral, é o que se espera da educação não só neste contexto, mas que ali se faz mais urgente e notório. Assim como também se torna notória a insuficiência da visão instrumental da tecnologia.
Nas próximas semanas traremos aqui outros elementos destas leituras, aprofundando as relações entre a educação do campo e as tecnologias.
Como parte deste projeto de aproximação, apropriação e diálogo, continuaremos fazendo a leitura destes textos para além do grupo que iniciou esta dinâmica. Para isso, nesta quinta-feira, dia 29 de abril, daremos início a uma nova etapa do grupo de estudos. Ele foi transformado em um programa de rádio, que irá ao ar todas as quintas-feiras, das 13:30 às 14:30, ao vivo (e também disponibilizado em poadcast), em que qualquer sujeito possa, além de ouvir, interagir.
Para participar, acesse o site da RádioFaced: www.radio.faced.ufba.br
Texto escrito e postado por Adriane, a partir do grupo de estudos Tecnologias e Educação do Campo, composto por Adriane Halmann, Bruno Gonsalves, Luciana Oliveira, Marildes Caldeira, Tania Torres e Washington Oliveira.
* ARROYO, Miguel González; CALDART, Roseli Salete; MOLINA, Mônica Castagna. Por uma educação do campo. 3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.
** Os autores não abordam especificamente as relações com as tecnologias. Estas relações são postas neste texto a partir de discussões do grupo de estudos.